manifesto
panegírico
em
forma de pequeno ensaio
sobre
uma grande figura
com
notas de rodapé
Ele
não para e nunca dececiona os seus adetos indefetíveis; sempre
recetivos a qualquer dos seus atos, quaisquer que sejam as aceções
destes ou o aspeto que aparentem. Sob esta ótica, ele é um político
fraturante, de fação, de rutura, de reação, de fato. Um olfato
venatório, um tato circunspeto, um caráter percetivo, um instinto
matador e um génio disrutivo temperado de eletricidade estática
ininterruta permitem-lhe projetar epifenómenos de um afeto
entusiasmado, anticético e abstrato, num trajeto muito adjetivado
arquitetado em perfuntórias perspetivas que adotam sempre novas
direções.
O
parágrafo que acabastes de ler foi laboriosamente redigido para
vosso exclusivo prazer e deleite. A pura verdade, como o evangelho,
no mais puro português de lei. Dir-se-ia du Padre
Vieira, mas sem espinhas; depurado e palatável: com
menos consoantes mudas e mais vogais surdas. Reconheço que o logrei
concluir, deste modo ortograficamente correto, com
muita dificuldade.
Mas
felizmente existe agora mais do que apenas uma geração que já se
exprime assim com toda a naturalidade. Toda uma basta gente
instruída e alfabetizada deste modo admirável.
E
isto deve-se a um português ímpar1.
Sim, .-porque
são poucos, cada vez menos ou nenhuns, os que, através de uma acção
benemérita e desinteressada logram influir assim,
de modo estruturante e
perdurável, na formação e edificação de gerações futuras.
Trata-se
de alguém cujo contributo voluntarioso e pertinaz foi fundamental
para tornar exequível este aggiornamento, este
desabrochar2
da língua, este milagre do português redivivo, enfim, este
épanouissement da
escrita de expressão
lusitana.
Mas
deixemos-nos de galicismos, itálicos e rodriguinhos: foi
este bravo que, confessadamente, tomou por missão patriótica o
desígnio de Cavaco de fazer aprovar o acordo ortográfico
de 1990.
Ele
integrava então, como secretário d'estado da cultura,
o governo que na mesma época também eucaliptizou
o país (Cavaco, considerava - certamente bem informado, como sempre
- que o eucalipto seria o “nosso” petróleo verde).
Muitos
anos depois, o país não se tornou exactamente um petro-estado mas a
verdade é que arde sempre mais um pouco a cada ano - o que prova que
o nosso petróleo, se não é tão carburante, é pelo menos
tão inflamável como o dos outros. E é ainda mais verdade que a
nossa língua escrita, e até a falada, não só nunca mais foi a
mesma como nunca há-de voltar a ser simplesmente uma língua como as
outras.
Trata-se,
já adivinhastes, do inefável, imarcescível, inimitável,
inconfundível, inolvidável, imprescindível, inimputável,
inamovível, imperturbável, irredutível, incontornável, e
insubstituível...
Pedro
Santana Lopes.
Mas
o desempenho do actual e
recidivo presidente da Câmara Municipal da Figueira da Foz não se
ficou apenas pelo brilharete na ortografia da língua; o que, num
país reconhecido, já seria suficiente para lhe ser concedida a
honra vitalícia de empunhar o estoque de Condestável
ou, no mínimo, de conselheiro de estado. Somos uma república
ingrata, essa é que é essa.
Santana,
que recentemente confidenciou a um canal de televisão que se sente
com qualidades para o desempenho do cargo de presidente da república
de Portugal, já prestou muitos outros, bastos e relevantes, serviços
à pátria, desempenhando sempre as mais variadas presidências –
sempre eleito, por convite ou nomeação: a do Sporting; a da Santa
Casa da Misericórdia; a do município de Lisboa, a de um partido
político, por si mesmo criado para o efeito e ao qual se referia
sempre no feminino; até a do mesmíssimo Governo de
Portugal. Sempre com o mesmo aprumo e sainete3,
amplamente reconhecidos, e igual impacto estruturantemente
decisivo e perdurável no devir de todas as felizes instituições
contempladas.
Ele
é um homem nascido para mandar, para decidir, para influir, para
dirigir. Porque não para presidir à república portuguesa? Sim,
porque se a república é ingrata, o povo, esse, é muito
agradecido e penhorado. O
coração do povo é como um diamante dentro de um cofre-forte e
Santana é um desses, poucos, predestinados (como o Cavaco e o
Marcelo) que lhe conhecem o segredo. Eu conto-vos como ele
abriu o cofre do povo da Figueira e se apoderou do coração daquela
terra.
Em
1997, a Figueira vivia amancebada há mais de quinze anos com um
velho dinossauro4 xelentíssimo e sucialista,
numa relação tóxica que arrefecia. A Figueira é como a loura das
telenovelas; ciumenta como uma leoa mas volúvel como uma borboleta:
só tá bem onde não tá, só quer o que não tem, sempre à
espera do príncipe encantado que, segundo um psicólogo social
local5, há-de vir um dia em manhã de nevoeiro.
Quando Santana chegou, estava nevoeiro e não se via nada. Bom, não
era nevoeiro, era fumo; estava a Naval a arder6, mas era
de manhã e não se via nada. Quando ela finalmente o lobrigou, ele
era o príncipe encantado que sempre desejara, jovem e garboso e
bonito como o galã cafajeste das novelas que mata cabras só com o
olhar. E assim foi. Mal ele lhe pôs a vista em cima,
foi de caixão à cova; fulminante: paixão recíproca e amor,
fatal. Foi o início de uma chanfana intensa, que dura
até hoje, cheia de peripécias e infidelidades. Uma vez ele chegou
mesmo a trocá-la por outra (outra câmara municipal7)
deixando-a para trás a ver navios e com um montão assim de dívidas
para pagar8. Mas ela perdoa-lhe tudo e acolhe-o sempre de
volta, com os braços quentes de carinho, no seu leito sempre ardente
de paixão. Mas vai-e-volta ele diz que vai. E ela então diz-lhe Não
venhas tarde, meu torresmo. E
ele vem sempre mais tarde, porque não sabe fugir de si mesmo.
Notas
de rodapé:
1--ímpar quer dizer
raro, ou ainda mais, único.
2 – desabrochar, neste contexto específico,
quer dizer tirar da boca.
3 - qualidade
agradável ou que causa prazer = GOSTO, GRAÇA, PIADA.
4 – Manuel Alfredo
Aguiar de Carvalho, presidente da Câmara Municipal da Figueira da
Foz entre 1982 e 1997.
5 – António
Tavares, professor no Liceu, vereador eleito e escritor premiado.
6 – Aconteceu mesmo.
No dia 4 de julho de 1997.
7 – a de Lisboa,
essa galdéria.
8 – facto que ele
finalmente assumiu mas reconhece como “despesas de investimento”
.