.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Porto, carnaval 2016

.
.
Vejo agora que tanto as minhas viagens como o próprio acto de escrever têm sido maneiras de me evadir... Escrever é uma forma de terapia. Por vezes pergunto a mim próprio como é que aqueles que não escrevem, compõem ou pintam, conseguem fugir à loucura, à melancolia e ao medo inerentes ao género humano
Graham Greene, in Caminhos de evasão
.
A páginas tantas de um dos seus magníficos romances, o escritor norte-americano Ross Macdonald põe na boca de um personagem esta frase notável: “não gosto da lei no seu estado primitivo actual”.
Tal como o personagem de Macdonald eu também não. Mas o meu triste descontentamento não se limita apenas à lei vigente, o estado da justiça - estende-se também ao actual estado primitivo de quase tudo, à realidade tout court. Este desconforto com o meu tempo deixa-me, não raro, prostrado num estado de melancolia para o qual só encontro paliativo através da arte ou da evasão - pela leitura ou pela viagem.
.
Tal como em Graham Greene, a minha necessidade de evasão nunca é apenas uma fuga, mas também uma busca. Uma demanda, por vezes desesperada reconheço, de algo que eu próprio nunca sei. Talvez da surpresa. Do encantamento. Em todo o caso, de uma saída do beco absurdo em que desemboca por vezes um quotidiano obsessivamente ensimesmado.
.
De modos que desta vez, para salvaguardar alguma sanidade mental e me livrar do espírito sazonal de uma cidadezinha de província possuída pela volúpia tropical de um carnaval de pacóvios, dei uma escapada ao Porto. Há alguns anos que lá não ia.
.
Encontrei-o como de costume, com o seu ar grave e sério, e o seu timbre pardacento
Mas isso é só por fora. Por dentro é outro o filme: parece um de Fellini. Penso que foi outro italiano, Nicolo Nasoni, que melhor lhe soube captar o espírito, na sua obra mais acabada. O Porto é como a igreja dos Clérigos: austero e bruto por fora, feito quase só de pedras sujas e gastas; por dentro é feérico e barroco, repleto de artifícios engenhosos e alusões subtis, e de mármores rosas e verdes e de madeiras exóticas talhadas até à abstração e revestidas de ouro do Brasil.
.
Este espírito encontrei-o na impávida espampanância do voo dos pavões do Palácio de Cristal, do alto dos cedros do Líbano para os jardins, onde passeiam a sua exuberância tranquila entre os visitantes. Mas também nos portuenses, na maneira como falam e como gostam de se ouvir dizer tudo com um humor rebarbativo, sem eufemismos nem concessões ao recomendável.
Não gostei da progressiva gentrificação da baixa e da ribeira, tomadas pelo espírito gurmê e pelos turistas (chineses, espanhóis, brasileiros) nem de alguns atentados ao bom gosto e ao bom senso, como por exemplo o execrável monumento a Camilo Castelo Branco, em frente à Cordoaria e à Cadeia da Relação, que é um  escarro na memória do genial escritor: os portuenses deviam envergonhar-se de exibir uma merda tão infame e grotesca, pastiche notório e mal enjorcado da bela peça de escultura que Teixeira Lopes (um portuense) dedicou a Eça de Queiroz.
.
Mas quanto ao espírito de Carnaval, o verdadeiro espírito de Carnaval, também o encontrei no Porto. Foi essa a surpresa desta viagem. E curiosamente, ou talvez não, numa exposição de arte sacra.
No espaço das antigas sacristias da igreja dos clérigos está uma bela exposição de pinturas e esculturas oriundas de várias proveniências do norte da península, sobre o corpo de Cristo - o Corpus Christi. Foi lá que, entre dezenas de peças medievais, renascentistas, barrocas, neo-clássicas, de pau, de pedra, de marfim, até de jade, representando o corpo nu de Cristo na cruz, encontrei a pequena obra, que reproduzo acima, da autoria de um obscuro e hoje anónimo artista medieval, talvez portuense.
.
A obra representa o mistério central do Cristianismo e um dos seus dogmas fundamentais: a Santíssima Trindade. A crença no mesmo deus, dividido em três pessoas; o pai, o filho e o espírito santo; "é o Pai quem gera, o Filho quem é gerado e o Espírito Santo quem realiza".
O artista construiu a sua peça numa estrutura piramidal, como era o cânone medieval. No entanto a seriedade do dogma parece-me desde logo comprometida pela factura ingénua, de cunho popular, quase infantil, e pelo estranho eixo diagonal em que dispôs os personagens, que introduz a falha que desequilibra todo o conjunto.
.
Deus pai, o criador coroado – de olhar algo perplexo e sorriso meio aparvalhado, cujo imenso corpo ocupa toda a composição, coberto por um  imenso manto apenas esboçado - segura com as mãos ambas e entre os joelhos, apenas sugeridos, a cruz com o corpo de seu filho morto; entre as cabeças de ambos, nesse estranho eixo diagonal, paira esse bizarro pássaro surrealista que é o espírito santo – como que sublinhando o cómico, ou o absurdo, da situação.
É esta revelação, ou exibição, pública do absurdo, através da imaginação, do humor, da derisão e da subversão dos códigos aceites, que relativiza o absoluto e que eu chamo espírito de Carnaval.
.
O artista parece ter sido inspirado pelo espírito santo, pois a sua obra chegou incólume até nós. Mas o seu espírito também; continuou a inspirar Rosa Ramalho, Mistério e todos os outros oleiros ainda activos em Barcelos, seus bastante óbvios e legítimos descendentes, ou herdeiros.
É Carnaval, ninguém leva a mal. Pelo menos o espírito santo não tem levado.

Já quanto a Deus, não estou certo que tenha sequer pisgado alguma coisa.
.

2 comentários:

cid simoes disse...

Coragem, determinação, sensibilidade, conhecimento e inteligência são atributos indispensáveis para se poder viver neste manicómio onde nos tratam por loucos, e, tudo isso não falta neste blogue.
Saúde!


catarro disse...

Também sou muito da matéria, determinada pelas dinâmicas humanas a que chamamos (teimosamente, às vezes) inteligência, com reflexo criador que, por assim - humano e criador - nos deixa plenos da sensação de êxodo necessário do manicómio em que tudo isto se tornou. Mas apesar disso e pela minha parte (dogmaticamente, pois claro), não consigo deixar de pensar que para lá de todo o ruído e toda a luz feérica e esquizofrénica, que produzimos e de que nos alimentamos, há também um silêncio, que parece preceder-nos e esperar por nós ao mesmo tempo. Aí é que me parece, que Deus é mesmo capaz de pisgar. Quanto à convocatória intelectual, notável, como sempre.