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Vejo agora que tanto as minhas viagens como o próprio acto
de escrever têm sido maneiras de me evadir... Escrever é uma forma de terapia.
Por vezes pergunto a mim próprio como é que aqueles que não escrevem, compõem
ou pintam, conseguem fugir à loucura, à melancolia e ao medo inerentes ao
género humano
Graham Greene, in Caminhos de evasão
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A páginas tantas de um dos
seus magníficos romances, o escritor norte-americano Ross Macdonald põe na boca
de um personagem esta frase notável: “não gosto da lei no seu estado primitivo
actual”.
Tal como o personagem de
Macdonald eu também não. Mas o meu triste descontentamento não se limita apenas
à lei vigente, o estado da justiça - estende-se também ao actual estado
primitivo de quase tudo, à realidade tout court. Este
desconforto com o meu tempo deixa-me, não raro, prostrado num estado de
melancolia para o qual só encontro paliativo através da arte ou da evasão - pela
leitura ou pela viagem.
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Tal como em Graham Greene, a
minha necessidade de evasão nunca é apenas uma fuga, mas também uma busca. Uma demanda,
por vezes desesperada reconheço, de algo que eu próprio nunca sei. Talvez da
surpresa. Do encantamento. Em todo o caso, de uma saída do beco absurdo em que desemboca
por vezes um quotidiano obsessivamente ensimesmado.
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De modos que desta vez, para salvaguardar
alguma sanidade mental e me livrar do espírito sazonal de uma cidadezinha de
província possuída pela volúpia tropical de um carnaval de pacóvios, dei uma
escapada ao Porto. Há alguns anos que lá não ia.
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Encontrei-o como de costume, com
o seu ar grave e sério, e o seu timbre pardacento.
Mas isso é só por fora. Por
dentro é outro o filme: parece um de Fellini. Penso que foi outro italiano, Nicolo
Nasoni, que melhor lhe soube captar o espírito, na sua obra mais
acabada. O Porto é como a igreja dos Clérigos: austero e bruto por fora,
feito quase só de pedras sujas e gastas; por dentro é feérico e barroco,
repleto de artifícios engenhosos e alusões subtis, e de mármores rosas e verdes
e de madeiras exóticas talhadas até à abstração e revestidas de ouro do Brasil.
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Este espírito encontrei-o na
impávida espampanância do voo dos pavões do Palácio de Cristal, do alto dos
cedros do Líbano para os jardins, onde passeiam a sua exuberância tranquila entre
os visitantes. Mas também nos portuenses, na maneira como falam e como gostam
de se ouvir dizer tudo com um humor rebarbativo, sem eufemismos nem concessões
ao recomendável.
Não gostei da progressiva
gentrificação da baixa e da ribeira, tomadas pelo espírito gurmê e pelos
turistas (chineses, espanhóis, brasileiros) nem de alguns atentados ao bom
gosto e ao bom senso, como por exemplo o execrável monumento a Camilo Castelo Branco, em frente à Cordoaria e à Cadeia da Relação, que é um escarro na memória do genial escritor: os
portuenses deviam envergonhar-se de exibir uma merda tão infame e grotesca,
pastiche notório e mal enjorcado da bela peça de escultura que Teixeira Lopes
(um portuense) dedicou a Eça de Queiroz.
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Mas quanto ao espírito de Carnaval, o verdadeiro espírito de Carnaval, também o encontrei no Porto. Foi essa a surpresa desta viagem. E
curiosamente, ou talvez não, numa exposição de arte sacra.
No espaço das antigas
sacristias da igreja dos clérigos está uma bela exposição de pinturas e esculturas
oriundas de várias proveniências do norte da península, sobre o corpo de Cristo
- o Corpus Christi. Foi lá que, entre dezenas de peças medievais, renascentistas,
barrocas, neo-clássicas, de pau, de pedra, de marfim, até de jade, representando
o corpo nu de Cristo na cruz, encontrei a pequena obra, que reproduzo acima, da autoria
de um obscuro e hoje anónimo artista medieval, talvez portuense.
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A obra representa o mistério
central do Cristianismo e um dos seus dogmas fundamentais: a Santíssima
Trindade. A crença no mesmo deus, dividido em três pessoas; o pai, o filho
e o espírito santo; "é o Pai quem gera, o Filho quem é gerado
e o Espírito Santo quem realiza".
O artista construiu a sua
peça numa estrutura piramidal, como era o cânone medieval. No entanto a
seriedade do dogma parece-me desde logo comprometida pela factura ingénua, de
cunho popular, quase infantil, e pelo estranho eixo diagonal em que dispôs os
personagens, que introduz a falha que
desequilibra todo o conjunto.
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Deus pai, o criador coroado
– de olhar algo perplexo e sorriso meio aparvalhado, cujo imenso corpo ocupa
toda a composição, coberto por um imenso
manto apenas esboçado - segura com as mãos ambas e entre os joelhos, apenas
sugeridos, a cruz com o corpo de seu filho morto; entre as cabeças de ambos,
nesse estranho eixo diagonal, paira esse bizarro pássaro surrealista que é o espírito santo – como que sublinhando o
cómico, ou o absurdo, da situação.
É esta revelação, ou
exibição, pública do absurdo, através da imaginação, do humor, da derisão e da
subversão dos códigos aceites, que relativiza o absoluto e que eu chamo espírito de Carnaval.
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O artista parece ter sido
inspirado pelo espírito santo, pois a
sua obra chegou incólume até nós. Mas o seu espírito
também; continuou a inspirar Rosa Ramalho, Mistério e todos os outros oleiros ainda
activos em Barcelos, seus bastante óbvios e legítimos descendentes, ou
herdeiros.
É Carnaval, ninguém leva a
mal. Pelo menos o espírito santo não
tem levado.
Já quanto a Deus, não estou certo que tenha sequer pisgado alguma coisa.
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2 comentários:
Coragem, determinação, sensibilidade, conhecimento e inteligência são atributos indispensáveis para se poder viver neste manicómio onde nos tratam por loucos, e, tudo isso não falta neste blogue.
Saúde!
Também sou muito da matéria, determinada pelas dinâmicas humanas a que chamamos (teimosamente, às vezes) inteligência, com reflexo criador que, por assim - humano e criador - nos deixa plenos da sensação de êxodo necessário do manicómio em que tudo isto se tornou. Mas apesar disso e pela minha parte (dogmaticamente, pois claro), não consigo deixar de pensar que para lá de todo o ruído e toda a luz feérica e esquizofrénica, que produzimos e de que nos alimentamos, há também um silêncio, que parece preceder-nos e esperar por nós ao mesmo tempo. Aí é que me parece, que Deus é mesmo capaz de pisgar. Quanto à convocatória intelectual, notável, como sempre.
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