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sexta-feira, 18 de abril de 2025

Daniel Abrunheiro

Cerrou o livro e ruminou em torno um olhar pacificado pela digestão. O estabelecimento chamava-se café Colonial e era uma nave dormente. Ficava do outro lado da avenida, em oposição à gare rodoviária. No mostrador de vidro do balcão, a comida, como quase nunca a vida, era a cores. A uma das cadeiras da mesa de Camilo, havia uma revista com Lady Di a fazer capa. À mesa da janela, duas senhoras que eram putas comiam pastéis de bacalhau. “Há sempre putas perto das rodoviárias e dos caminhos-de-ferro” - diria Camilo Ardenas, sem abrir a boca, se pudesse lembrar-se de passados comboios, de pretéritas rodoviárias e de idas putas. Aquelas duas madalenas empurravam o bolo alimentar com golfadas de cerveja preta.

Uma estava toda vestida, calçada e brincada de lilás. A mastigação aberta traía-lhe um dente azul, em cujo azulejo rechinava de saliva um fiapo ambulatório de bacalhau. A outra envergava verde e azul como uma varejeira. Suspendia da cabeça pequenina um largo par de brincos de plástico brilhante que semelhavam olhos laterais e doentes. As duas levantaram-se e saíram porta fora. Ao sair, eram de novo soldados em combate.

Camilo Ardenas entrou na sinopse de Diana Spencer. Comoveu-o a melancolia interminável da princesa viva e quando esposa de um príncipe que parecia ter nascido para consultar clandestinamente, no 221-B de Baker Street, a perícia de Sherlock Jeremy Brett Holmes a propósito de cornos conjugais. Pediu mais um café, abandonou a revista e espreitou a rua.

Tinha parado de chover. Enquanto o café não vinha, Camilo foi à porta consultar o céu. A maravilha era a chuva ter parado em plena queda. Erguendo a cabeça e o olhar, foi-lhe possível ver que a chuva, congelada em plena precipitação, era agora uma espécie de lustre de agulhas suspensas, tais varetas de aço que só esperavam por uma ordem de Cima para cair e matar de novo os mortos e quanta memória deles sobrasse nos vivos. Camilo Ardenas gostou desta avaria da Natureza. Recompensou-o sentir que também as coisas podiam apresentar uma desordem natural, um esplendor de sucata, uma demência caprichosa, um capricho alcoólico. Tornou à mesa, aguardado pela chávena nova, mas não já por Diana. Pediu um cálice de porto e para telefonar. Telefonou. Não o atenderam.

A mesa que tinha sido das putas estava agora ocupada por uma senhora vasta. Era um porta-aviões ginecológico torpedeado sem clemência pela idade. Camilo calculou-lhe oitenta anos. Não era para menos. Maquilhada de alguns oito boiões diferentes, parecia sonolenta, bocejando de sob os cremes. O rímel pesava-lhe nas pestanas como lixo num toldo. A boca era-lhe um trapo escarlate. O pescoço descia por camadas geológicas. Os seios, enrodilhados em arame e tela, subiam num decote murcho. As mãos de pergaminho terminavam em ossos sardentos e tão couraçados de anéis, que se diria usar soqueiras de gangster. Asfixiados e esquecidos no chão dentro de sapatos de salto alto, os joanetes eram rotundos como hematomas de cálcio úrico. Enroupara-se com uma elegância anacrónica e piedosa de coquette.”

Daniel Abrunheiro

in Terminação do Anjo - Portugália Editora, 2008


domingo, 6 de abril de 2025

William Faulkner

 
 

Meteu silenciosamente pela alameda e mal chegou à cancela aspirou o perfume da madressilva. A casa encontrava-se às escuras, silenciosa e imóvel, como se o refluxo de todo o tempo a tivesse encalhado no espaço. O concerto dos insectos estava reduzido a um murmúrio monótono, exausto, espalhado por toda a parte e por lado nenhum, como se o som fosse a agonia química de um mundo abandonado, nu, e moribundo, na superfície do fluído onde vivia e respirava. A Lua pairava em cima, mas sem luz; a Terra jazia em baixo, mas sem trevas. Abriu a porta, dirigiu-se às apalpadelas para o quarto e acendeu a luz. A voz da noite – os insectos ou lá o que fosse – entrara como ele em casa. Compreendeu de súbito que se tratava do atrito da Terra no seu eixo, ao aproximar-se o momento em que decidiria se continuaria a girar ou se pararia para sempre, transformada numa bola imóvel no espaço que arrefecia e através do qual o odor forte da madressilva serpenteava como fumo frio.”

in Santuário (tradução de Fernanda Pinto Rodrigues, edição Minerva de bolso, 1973)

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terça-feira, 18 de março de 2025

Breves considerações sobre o senhor Lopes, alguns dados históricos indesmentíveis e outras tantas questões suscitadas por factos igualmente comprováveis

 

 

A discussão sobre o legado do colonialismo está por todo o lado (já chegou às universidades, ao Quai d'Orsay, à pérfida Albion, ao Museu de Berlim e até ao Vaticano) e chegou finalmente ao Museu Municipal, através de uma exposição/instalação, produzida pela Universidade de Évora, programada ainda pelo antecessor de Santana Lopes.

O actual presidente da Câmara Municipal teve porém, o cuidado de fazer saber, através da Agência Lusa, que não concorda com tal discussão mas não proíbe “para não ter um novo caso Saramago, mas ninguém [do executivo] vai lá. Assumo a nossa história com honra e honramo-nos muito da coleção do museu municipal".

Este assunto mereceu-me alguma reflexão e meia dúzia de breves considerações.

Eu considero que o senhor Lopes tem todo o direito de concordar ou de não concordar com o que quer que seja. Considero até que ele tem o direito de o afirmar em voz alta em qualquer discussão. Mas também considero que ele não tem o direito de se arrogar o privilégio de poder proibir porra nenhuma, sobretudo a discussão pública do que quer que seja.

Eu também sou um cidadão português, como o senhor Lopes, mas, ao contrário dele, considero que há muito da ”nossa história” que não assumo “com honra”. Considero mesmo que grande parte dela não só é muito discutível como é profundamente lamentável.

Considero, por exemplo, que a confinação forçada de mouros e judeus (as mourarias e judiarias, três séculos); a perseguição aos ciganos (oito séculos e meio) a Santíssima Inquisição (três séculos), o tráfico negreiro e a escravatura como modelo social e económico (quatro séculos e meio), o colonialismo moderno (um século), a ditadura fascista (quarenta e oito anos) e o obscurantismo fanático patrocinado pela santa religião (persistente desde a fundação da nacionalidade) perfazem um balanço nada glorioso, nem minimamente honroso, mas absolutamente vergonhoso. A tudo isto ainda se pode acrescentar a perseguição ao livre-pensamento, que funcionou ininterrupta e alegremente durante cinco séculos (a título de exemplo: no séc. XVI Gil Vicente foi preso, Camões foi censurado e Damião de Góis foi detido, espoliado de bens e morreu sarnento; no séc. XVII Fernão Mendes Pinto foi censurado e Francisco Manuel de Melo preso e degredado; no séc.XVIII António José da Silva foi torturado, esquartejado e queimado vivo, o Cavaleiro de Oliveira foi exilado e Bocage foi detido; no sec. XIX o general Gomes Freire de Andrade foi enforcado; no sec. XX, entre muitos outros, perseguidos ou aprisionados, o escultor José Dias Coelho e o general Humberto Delgado foram assassinados).

Reconheço que estes factos, facilmente constatáveis por quem sabe ler, podem ser difíceis de aceitar por cidadãos como o senhor Lopes que, emprenhados pelos ouvidos com o patrioteirismo encadernado nos manuais salazaristas e pelos olhos com o paroquialismo envernizado dos programas de televisão do senhor Saraiva, sentem-se hoje muito ufanos da “nossa” história.

Mas como é possível que o autarca que afirma, no plural da modéstia e em acordês ortográfico, que “honramo-nos muito da coleção do museu municipal“, seja o primeiro e último responsável de que grande parte do imenso e valioso acervo desse museu esteja afinal ainda por investigar e catalogar? – unicamente por falta de vontade, ou de oportunidade política, para financiar adequadamente a contratação de pessoal competente e especializado. De que “se honra” então, exactamente, o senhor Lopes?

Por quem se toma o senhor Lopes? Por quem nos toma o senhor Lopes?

Quem pensa que é o senhor Lopes, que tutela uns serviços de cultura que ao cabo de três anos e meio de mandato ainda não foram capazes de criar um único evento ou exposição de inequívoca relevância artística ou cultural?

Quem foi que votou no senhor Lopes, que quase no fim do seu mandato ainda programa eventos agendados pelo seu antecessor?

Porque raio de carga de água o senhor Lopes se concede a si próprio o privilégio de autorizar, com uma pretensa intenção condescendente, um compromisso assumido pelo seu antecessor legalmente eleito?

Quem lhe conferiu o poder supremo de proibir ou autorizar a discussão pública de seja o que for, ou até de nutrir a percepção de que o pode fazer?

Quem foi que lhe inseminou um rei absoluto na barriga?

- Devo acrescentar que estou convencido de que esta exposição teria sido liminarmente cancelada, sem pruridos de tolerância - se não tivesse sido produzida pela Universidade de Évora. - Porque gente como o senhor Lopes, que nutre um respeitinho reverendíssimo e supersticioso por tudo o que seja “doutor”, jamais afrontaria uma entidade tão mística que cauciona esses títulos com diploma.

Posto isto, como é possível que alguém com o perfil do senhor Lopes seja presidente da Câmara Municipal da cidade de Manuel Fernandes Tomás, de Cristina Torres, de João de Barros, de Joaquim de Carvalho?

Como é óbvio, não espero que qualquer destas perguntas tenha resposta. Formulei-as porque, como livre-pensador e algumas aves, tenho necessidade de espantar as minhas perplexidades.

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Na imagem ao alto, o ridículo sem noção, em foto oficial de pose e de aparato: o senhor Lopes passeia pla Figueira o seu esplendor paroquial, com banda de música, cortejo de servidores, séquito de beatas, três flamingos num guarda-sol, um padre e alguns basbaques.

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