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quarta-feira, 20 de julho de 2022

O busto de Sá Carneiro


 

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Francisco Sá Carneiro é um aeroporto homónimo de um político de direita que pereceu, em 1980, num acidente de avião (ou atentado, nunca ficou totalmente esclarecido) quando se dirigia precisamente a esse mesmo aeroporto. 

Embora Francisco Sá Carneiro, o aeroporto (assim baptizado em 1990, no esplendor do cavaquismo, com um panache explicitamente vingativo e um humor negro certamente involuntário) seja hoje mais conhecido do que o político que lhe deu o nome, este é ainda, não obstante, uma espécie de referência vaga mas também, e sobretudo, uma figura de devoção para todas as gerações de eleitores e de políticos de direita que se sucederam – isto é, um busto, como o do Padre Cruz ou o do Doutor Sousa Martins, veículo de uma certa religiosidade ingénua de cunho popular. A aura de mártir coitadinho mas determinado deve-se ao facto de ter perecido de forma trágica e nebulosa sem conseguir “a maioria, o governo e o presidente” tão almejados; ou seja, sem ter logrado consumar esse devaneio de poder absoluto que é o sonho molhado do ultramontanismo nacional desde que o senhor dom Miguel e toda a sua descendência foram exilados, e proscritos à perpectuidade, por Carta de Lei de 1834.

Um dos mais notórios devotos deste pitoresco culto tem sido Pedro Santana Lopes, o represidente da Câmara Municipal da Figueira da Foz. Sempre que confrontado com chuva na eira e bom tempo no nabal, ou com qualquer outra espécie de contrariedade, dúvida metódica ou improcedente perplexidade, Santana invocava o santo nome de Francisco Sá Carneiro e logo o dúbio se tornava evidente, o torto se endireitava, o escuro se clarificava, o utente virava cliente e o assalariado colaborador, enfim, toda a verdade era revelada quando, de repente, enquanto anjinhos cantavam hossanas, a canícula explodia na eira e as nuvens desaguavam sobre nabos e nabiças um suave milagre que rutilava de pérolas de humidade os olhares rendidos e convencidos dos demais devotos e até de alguns basbaques.

Mas isso já lá vai. Santana já não invoca o santo nome do padroeiro da aviação portuense por dá cá aquela palha. Agora “não gosta de fazer conjecturas sobre quem já cá não está”. Santana agora governa a Figueira da Foz. Pla segunda vez. Pragmático e sem estados d’alma. Sem maioria, mas igualmente sem oposição. Dito de outro modo, Santana governa com o pugrama da oposição, isto é, com o do seu antecessor - e fá-lo, imperturbável e imarcescível, com geral aprovação, na presença deste, agora como vereador. Com a mesma plítica de obras municipais; a mesmíssima opção estratégica plo turismo rasca ou sem classe (com o seu cortejo perfumado de lixo imundo, de mijo infecto e de vómito fétido plas ruas) notória na opção clara plo mesmíssimo patrocínio voluntarioso ao mesmo género de eventos de massas que são o gáudio dos labregos e a alegre facturação do lóbi da caçarola. Quanto ao tão badalado investimento num segmento de ensino superior - como não se vê (ninguém vê) estaleiro de construção de infra-estruturas específicas para o ensino da ciência, tais como laboratórios, viveiros, observatórios, estufas, aquários, bibliotecas etc, etc, (a ciência, helas, não se ensina só com palestras, como o direito e a treta em geral) - tudo indica que se trata, na prática, de apenas mais um subsídio à hotelaria – ou seja, como de costume com o alto patrocínio da câmara municipal, da transladação, de Coimbra para a Figueira, do contingente necessário de broncos, “os piores, aqueles em que os vícios universitários se desenham mais profundamente” como dizia Ramalho Ortigão, para equilibrar os índices do consumo da bjeca na época baixa.

Nada que belisque o prestígio de Santana. As taxas de aprovação do seu trabalhinho crescem como o entusiasmo da juventude alemã pla aviação sem motor. Santana já não necessita de invocar Sá Carneiro para nada. Ele próprio já é um busto, na Figueira. Santana podia, se quisesse, passear-se pla fresca, todo nu ou de tutu cor-de-rosa, no calçadão da avenida; masturbar macacos no Picadeiro pla tardinha ou babar-se ao luar, na Esplanada, acompanhado à pandeireta, que o lóbi da caçarola haveria com certeza de achar bom para o turismo e os labregos haveriam de aplaudir com entusiasmo nas redes sociais. Santana até podia, se quisesse, como Calígula para humilhar o senado, nomear um cavalo cônsul.

Mas o que faz então, Santana? - perguntais vós. Pois, como já referi, em vez de passar a vida a pretender emular um exemplo malogrado, passou a fazê-lo em relação a um bem-sucedido. Eu já tinha avisado que, desta vez, ele veio pragmático: Santana deixou de se interrogar sobre o que faria o social-democrata Sá Carneiro e passou a fazer exactamente o que fazia o caligular Alberto João Jardim:

- como a Figueira não tem senado, nomeou um ex-vigilante (ou ex-guarda-nocturno ou ex-segurança-privado, ou lá o que é) para a comissão municipal de cultura;

- fez-se fotografar aos beijinhos e abraços a criancinhas tão loirinhas e com olhinhos tão azuis como bandeirinhas ucranianas; a andar de escorrega no jardim municipal; a inaugurar obras que o seu antecessor lançou e não foi capaz de concretizar e, entre outras tão lúdicas quão populares iniciativas, ainda fez saber que, no ano que vem, será o mordomo (vai pagar do seu bolso, numa vaquinha com o presidente da junta de S. Pedro) das festas anuais do santinho padroeiro local;

- e recebeu, em alegre confraternização, no salão nobre da câmara municipal, uma delegação de devotos do busto de Salazar em procissão. Um acto político que poderia ser embaraçoso para quem outrora teria dito que “ah e tal O doutor Sá Carneiro não tem nada a ver com André Ventura nem nunca teria nada a ver com o Chega. E jamais aceitaria ser invocado, como exemplo, pelo Chega”, mas que se torna perfeitamente aceitável e compreensível para quem sabe que, se os cheganos tivessem apresentado candidato à Câmara da Figueira, Santana provavelmente nem teria sido eleito. Ora, como em política “os favores não se agradecem, pagam-se”, foi isso mesmo que quis significar a sua calorosa recepção aos comparsas do senhor Ventura, com promessas tão vagas como solenes de prováveis colaborações num futuro que “a deus pertence”.

O povo em geral aprecia imenso quem paga as suas dívidas. Os devotos do busto de Santana também. E até os basbaques. Mas o que os arrebata mesmo é a encenação formal (a cheirar a ministério) e a linguagem piedosa (a feder a sacristia). Porque no fundo, e no fim, com o barulho das luzes, importa-lhes um peido que as dívidas se saldem com o que se não tem, porque “só a deus pertence”.

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1 comentário:

engaztop2 disse...
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