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quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Oração

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Como já referi aqui, sou um coleccionador de acasos, objectos que recolho amiúde nas minhas caminhadas. Com estes objects trouvés construo por vezes umas composições vagamente escultóricas a que chamo “achados”, que me servem para reflectir e (ou) sugerir a reflexão sobre eles próprios e o que sugerem ou o que representam, combinados. Gosto de objectos com vida própria e prévia, da sua pátina de uso ou de abandono, que associados a outros ganham outra vida, novos sentidos e significados.
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Há meses, achei na borda de um caminho um pequeno cristo crucificado, de bronze (ou latão), despojo certamente de algum rosário perdido e deteriorado pelo tempo. Chegado a casa, depositei-o no atelier, junto de outros objectos que acho, na esperança de que o acaso, como muitas vezes me acontece, me sugira uma revelação.
Foi assim que se me revelou este achado.
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Devo dizer (embora disso já saiba quem visita este blogue) que não acredito em nada. Nem na sua quinta-essência, Deus. Apesar disso, como é óbvio, o conceito de sagrado não me é estranho. O que me causa alguma estranheza e perplexidade é o modo como os meus coevos vivem esse conceito, que penso que pode explicar a sua (deles) aparente indulgência compreensiva  perante fenómenos como, por exemplo, a corrupção moral na vida pública.
Isto esclarecido, esta peça não é sobre a religião mas sim sobre a religiosidade.  Ou seja, não é sobre Deus ou o sagrado - mas sobre o modo como os crentes se relacionam com esses conceitos.
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O fulcro da relação colectiva dos crentes com esse ser omnipotente e omnisciente, que tudo criou e por tudo zela com igual magnanimidade, é a oração. É através dela que as criaturas comunicam com o criador. Contudo o que realmente cristaliza a devoção individual é a promessa - a promessa é uma espécie de contrato individual que o crente faz com deus, muitas vezes através de um intermediário (o seu filho-homem, a sua virgem-mãe ou um qualquer santinho) em troca de um favor especial. Em caso de deferimento, o crente não se importa de pagar com o sacrifício – em géneros, dinheiro ou então com a exibição pública de sevícias auto-inflingidas (esta ultima modalidade, algo primitiva, é muito mal vista e tem sido mesmo censurada pela Igreja - a entidade que tutela a  actividade -  porque dá mau aspecto aos turistas, preferindo o contado, mais higiénico e seguro para a viabilidade perpétua do negócio.
Ou seja, o crente acredita num criador magnânimo e infinitamente justo mas quer um tratamento preferencial. Este é, para mim, um dos mistérios da fé.
Em termos profanos chamar-se-lhe-ia “cunha” ou “tráfego de influências”. Penso que é isto que explica a natural condescendência dos cidadãos pelo fenómeno da corrupção. Eles acreditam profundamente que a carne é fraca e sabem (trata-se de um saber atávico) que nofundonofundo ninguém se safa sem um jeitinho; um favor especial, um empurrãozinho. E que ninguém faz nada por outrém sem o incentivo de uma atençãozinha. Nem deus.
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Enfim, se o próprio grande criador é sensível ao pedido de excepção e ao sacrifício - ou seja, é corruptível - como exigir o inverso ao presidente da junta, ao fiscal da Câmara, ao examinador de condução, ao vereador, ao chefe de finanças, ao secretário d’estado, ao ministro, ao legislador?
É isso que ilustra esta peça, a que chamei “Oração”. Ou “Promessa”. Que executei de forma sucinta, quase minimalista: com uma cunha de mogno envernizada, um corpo de cristo em bronze e três pregos zincados; tudo sobre uma tábua rasa, de pinho.
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domingo, 5 de agosto de 2012

A arqueologia do paradoxo


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Confesso que apesar de já ter alcançado a maturidade conservo ainda, como muitos da minha idade, alguns hábitos de infância. Para além de trazer sempre um canivete no bolso, como quando tinha a idade de Tom Sawyer, continuo um recolector de acasos. E também coleccionador. Não é raro, ainda hoje, chegar a casa com os bolsos cheios de acasos, que acho no meio do caminho, em forma de objectos estranhos ou inusitados.
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Alguns destes objectos, transfigurados pelo tempo, pelo acaso, pelo desprezo e por outros agentes involuntários adquirem amiúde, sem muito esforço de imaginação, significados, ou identidades, surpreendentes.
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No caso em apreço esses significados, ou novas identidades, transcendem tão sinteticamente a forma e utilidade originais do objecto que resumem toda uma época: o tempo presente – e é aqui que me sinto uma espécie de agente de uma estranha arqueologia – este achado podia bem ser um retrato ou, como agora dizem nos jornais, um ícone dos dias que passam: os da coêlha, ou do coelho ou, melhor ainda, do burro (o vulgar cretino hodiernoesse inefável apreciador da palha líquida, a bejeca).
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Quanto aos anos (estes que vivemos) já não são de chumbo mas de simples lata - a substância dos objectos, helas, não se transfigura - senão eu, em lugar de simples recolector, ter-me-ia feito também alquimista.
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quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Uma pedra no meio do caminho

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Por vezes encontro. Mesmo quando não procuro.
Isto é, quando em viagem, não ando propriamente em busca de objectos para elaborar mais uma das minhas composições com achados. Todavia, eles aparecem-me, como revelações. As suas presenças fortemente sugestivas e insinuantes impõem-se-me, como uma lógica irresistível.
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Foi o que me aconteceu na praia dos buizinhos, em Porto Côvo. 
Achei lá este seixo que não é apenas uma pedra. Isso é simplesmente o que parece a basta genteA mim parece-me muito mais. 
Quanto mais olho para ele mais me parece um óbvio Stº António.
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- Que andaria ele a pregar aos buizinhos, na praia de Porto Côvo?
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terça-feira, 12 de agosto de 2008

O pássaro verde

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Esta “escultura”, que está no meu jardim, é mais uma das minhas experiências com “achados”: uns ferros retorcidos, despojos de uma demolição, com os quais “compus” uma “espécie” de escultura sem volume. Como um simples desenho no espaço.
Trata-se de um conceito (mais um) inventado pelo grande Picasso. (A importância de um criador mede-se pela quantidade de novos signos que introduz na linguagem, e aí Picasso é imbatível; tanto que todos nós comunicamos ainda com imensos signos “inventados” por ele.)

Este conceito utilizou-o Picasso em 1928 no seu estudo para homenagem a Guillaume Appollinaire. A “construção” alcança, na sua versão exposta no Museum of Modern Art em Nova Yorque, a altura monumental de mais de quatro metros. Segundo Ingo F. Walther “Para a compreensão desta escultura sem massa e sem peso, desenhada no espaço, flutuando no tempo, é elucidativo procurar a história da sua origem na obra do próprio Apollinaire. O seu conto “Le poète assassiné” contém a espantosa descrição de um monumento para o poeta morto Croniamantal. À pergunta, como e de que material ele imagina o monumento, o escultor interrogado responde: ”Quero erigir uma estátua do nada, como a poesia e a fama.” Foi o próprio Picasso que apontou para o seu entusiasmo sobre este “monumento do nada, do vazio”. De resto, os seus estudos para este monumento a Apollinaire, que se aproxima mais do espírito do poeta que mil eloquentes elogios, foi recusado pela comissão por ser “demasiado radical”. As esculturas transparentes de Picasso, que se apoderam do espaço, representam em contrapartida mais um importante impulso para a história da escultura, que viria a fecundar mesmo os maiores escultores.”
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A Isabel possui, há muitos anos, uma pequena xilogravura com uma ilustração ingénua e uma citação de Göethe: “Coloquei a minha casa sobre o nada; é por isso que o mundo inteiro é meu”. Quando em 2001 adquirimos finalmente a casa que agora habitamos e que entre nós, não me ocorre porquê, baptizei de Sítio do Pássaro Verde, lembrei-me de lhe fazer “um monumento do nada, como a poesia e a fama”.
Eis uma explicação, obscura mas possível, para este Pássaro Verde que desenhado sobre o nada, se vai apoderando do espaço.
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quinta-feira, 29 de maio de 2008

Alegoria dos cereais


(Bobine de aço, cabeça de pá, crânio de plástico, pipocas.)

Esta espécie de “instalação” é a minha primeira peça de 2008, executada com “achados” (sucata e detritos da civilização do consumo e do desperdício.)
Se o século vinte foi o século dos totalitarismos, das guerras mundiais, dos holocaustos, dos gulagues, dos bombardeamentos aéreos(maciços e cirúrgicos), da bomba nuclear, etc., etc. - Que nos espera a nós, agora, no século XXI?
Diariamente, nas Bolsas de Valores de todo o “mundo civilizado”, a par da tão sórdida quanto lucrativa especulação com o preço dos combustíveis, viceja uma igual sordidez especulativa com o dos cereais - o que está provocando um tsunami silencioso entre os mais pobres. Todos estes sinais me parecem bem negros augúrios para este início de século XXI.
Tão negros como a derrisão, a crueldade e o humor algo sardónico desta peça que julgo tributária do espírito e da obra desse grande artista mexicano do início do século vinte, José Guadalupe Posada.
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domingo, 24 de junho de 2007

Guantánamo, 2005

(verguinha de aço, cabeça de enxada, passador,
anilhas, arame e tubo de alumínio)

O último dos achados de 2005.
O título surgiu-me bastante óbvio, em função dos “elementos” que seleccionei para a composição: uma grelha de verguinha (a prisão), uma enxada (que faz a cabeça e cujo olho faz a boca) e um passador (uma burka ou um véu).
A coloração de ferro-velho dos elementos, julgo que se adequa ao arcaísmo que representa: a antiga tentação humana de aniquilar o outro.
Esta peça tinha inicialmente uma “moldura”, um caixilho em madeira revestido de cola e areia, que nunca me satisfez inteiramente.
Após testar várias soluções, continua por concluir.
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quinta-feira, 14 de junho de 2007

a 2ª máscara

(madeira, contraplacado, cartão, uma velha serra de arco, espelho de fechadura, anilhas. um fecho com lingueta, pregos, taxas de latão)
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Eis outro dos achados de 2005.
Este é o caso de uma máscara que não tem por função ocultar - mas revelar, sugerir…
O facto de os elementos utilizados na sua construção terem sido achados, não impede contudo que não tenham sido criteriosamente escolhidos.
A revelação acontece quando se logra descodificar o total da soma das partes, incluindo os sentidos e implicações diversos das suas variadas origens…
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As máscaras têm sido para mim, recorrentemente, muito mais do que um simples motivo. Trata-se de uma questão de identidade.
Muito para lá da primordial função de garantir anonimatos ou de sonegar identidades, existem outras funções menos prosaicas para as máscaras: representar, sugerir, significar, interpretar.
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As máscaras, por serem expressões, humanas ou animais, petrificadas, ganham uma expressividade, um vigor e um mistério indefinidos. Adquirem qualidades inquietantes, o que lhes garante, da minha parte, um fascínio e uma devoção que já vem da infância.
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Em breve contar-vos-ei uma estória que talvez explique um pouco desse fascínio antigo.
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quinta-feira, 17 de maio de 2007

o assobiador

(estrado de madeira, uma velha talocha, espátula,
bocados de madeira,
cartão, anilhas e moldura dourada – 2005)
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De entre todos estes achados que vos venho mostrando, esta é, talvez, a peça onde é mais notório o exemplo de Picasso (para mim, o maior escultor do século vinte e arredores...)

É dele, entre outras também fecundas, a ideia que a escultura se pode fazer não apenas retirando bocados de um bloco (a talha) ou acrescentando nacos a um todo (a moldagem), mas juntando e combinando objectos díspares já existentes, o que alguém, mais tarde, cunhou de assemblage. É sabido que esta ideia, concebida nos anos dez do passado século, já fez o seu caminho na arte moderna…

É dessa ”nova” forma de fazer escultura a partir de objectos com vida própria e prévia, conjugando elementos vivos com uma livre associação de ideias e conceitos, que também eu parti para estes achados utilizando sem vergonha, como um dos netos de Picasso, o seu legado.
O velho Don Pablo teria feito o mesmo. Para ele os únicos escrúpulos quanto a cópias, eram em relação a si mesmo.
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quarta-feira, 9 de maio de 2007

O deus do silêncio (efígie)


(velha serra de cortar pedra, manípulo de torneira, ferrolho, anilhas)
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Este, ao qual chamei o deus do silêncio, é o meu preferido de entre todos os achados de 2005. Está na minha sala.

Em toda esta trabalheira, o que despoletou o acto criativo foram os objectos em si, a sua vida própria e as circunstâncias, conotações ou as ideias a eles associadas… Quando, numa velha oficina, recolhi aquela velha serra de cortar pedra, enferrujada, não sabia ainda o que dali ia sair. Mas o instinto dizia-me algo… sugeria-me a memória daquela velha máscara mortuária de Agamémnon, em ouro maciço, que todos conhecemos dos manuais de história…

Não sei por que curiosas sinestesias e por que misteriosos trâmites, um simples detrito nos devolve a infância e a fascinação inocente por imagens enigmáticas… que não entendemos de todo, mas que nos povoam a imaginação e que nos marcam para sempre, como um ferrete, dando razão a Picasso, ainda outra vez, quando dizia: “A arte não tem passado nem futuro. A arte grega ou egípcia não pertencem ao passado: estão mais vivas hoje do que nunca.”

E aqui está, já não em ouro maciço, como os fantasmas da antiga Grécia, mas em ferro, velho e indelével como a idade de Micenas, a prova provada que a imaginação nos reitera a vida que existe na arte do passado.
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sexta-feira, 4 de maio de 2007

nu masculino - o grande reprodutor

(em duas perspectivas: de frente e a três quartos)
(prancha de pinho, pintada; cabeça de enxada; chapa de cobre; 2 cadeados; manípulo de torneira; ferragens; embocadura de jerikan - 117x28 – 2005)
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Mais
Na minha ideia inicial, este faria par com um outro que representaria o outro sexo. Não logrei concretizá-lo antes da exposição que tinha agendada para Setembro desse ano, na Magenta, (de entre todos os trastes e velharias que atravancam os cantos do atelier, nenhum me deu aquele clic), e assim vai estando solteiro, este grande reprodutor.
Pendurado no meu atelier, entre um espelho e um cavalete, todos os dias olha para mim.
Qualquer dia.
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domingo, 29 de abril de 2007

janela com paisagem


(Velho batente de janela, tela engradada, invertida)

Outro dos Achados de 2005. Uma velha janela, achada num caminho perto de casa e uma tela que inverti, assinei, datei e até fixei preço!
É uma blague, um chiste, quase um ready-made. E uma espécie de homenagem Dada ao blagueur Marcel Duchamp, que dizia: “Todos os quadros têm teias de aranha no cu” e de quem já ouvi dizer que é “o artista mais influente do século XX”.(!!!)

Esta janela com paisagem pode parecer um preciosismo conceptual, mas é, sobretudo, uma blague despretensiosa e julgo que bem-humorada com o conceito da pintura como uma janela para o mundo…

Aqui, a pintura (a Arte), vira-se de costas… e mostra-vos as teias de aranha de todas as paisagens do mundo…
Dá a ver o outro lado da janela, o que fica de fora… e mostra-vos o reverso das paisagens (as apreensões da realidade) que observais das vossas janelas conceptuais.
O que vos propõe é, no fundo, uma espécie de inversão do ónus da Visão... E exige de vós uma reflexão sobre o sentido do olhar.
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segunda-feira, 16 de abril de 2007

Achados

Em Setembro de 2005 fiz uma exposição na galeria da Magenta, na Figueira da Foz. Além das habituais pinturas, expus sete peças que eram o resultado das minhas experiências de todo o Verão desse ano. Por ser tão diferente do que as pessoas conheciam do meu trabalho, tive a necessidade de me explicar e às sete peças que completavam aquela mostra. E que agora vos vou revelando.
Aqui fica, esse

Esclarecimento

Estes achados, esculturas, objects trouvés, improvisações, assemblages, montagens ou o que se quiser chamar-lhes, são, tão só e apenas, as experiências de um pintor.

Estas peças, onde se destacam os volumes e os seus efeitos (as texturas, as sombras, o espaço, etc.), não são esculturas no sentido convencional mas apenas obras de um pintor preocupado com as questões do desenho das coisas, da sua essência, isto é, das suas formas e seus sentidos.

Utilizando despojos de ferro-velho de variadas origens e combinando-os com madeiras e outros materiais, obtive fortes contrastes, novas formas e necessariamente outros significados: uma espécie de “transfiguração” cujo resultado, nalguns casos, me satisfaz o instinto.

Fernando Campos, Setembro, 2005

Retrato de uma senhora
(uma velha pá, uma serra-de-arco,chapa de ferro, tela pintada de negro)
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Eis um dos achados, de 2005. A esta foto falta ainda a velha moldura dourada com que foi exposto na já citada mostra na Magenta, em Buarcos, no Outono de 2005.
Sendo sem dúvida um objecto bizarro para o nosso meio, trata-se de um capricho de humor (como, aliás, todos estes achados), um objecto de artista, fruto de um impulso criativo imponderável que, por iniludível, não resisti a expôr e, agora, a mostrar também aqui.
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