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sábado, 30 de agosto de 2025

Luís Fernando Veríssimo (1936-2025)


 

Sou um gigolô das palavras. Vivo à custa delas. E tenho com elas a exemplar conduta de um cáften profissional. Abuso delas. Exijo submissão. Maltrato-as, sem dúvida. E jamais me deixo dominar por elas. Não me meto na sua vida particular. Não me interessa seu passado, suas origens, sua família, nem o que os outros já fizeram com elas. As palavras, afinal, vivem na boca do povo. São faladíssimas. Algumas são de baixíssimo calão. Não merecem o mínimo respeito

Luís Fernando Veríssimo



Um dia chega a Cântaro um jovem trovador, Lipídio de Albornoz. Ele cruza a Ponte de Safena e entra na cidade montado no seu cavalo Escarcéu. Avista uma mulher vestindo uma bandalheira preta que lhe lança um olhar cheio de betume e cabriolé. Segue-a pelos becos até um sumário — uma espécie de jardim enclausurado — onde ela deixa cair a bandalheira. É Lascívia. Ela sobe por um escrutínio, pequena entrada estreita, e desaparece por uma porciúncula. Lipídio a segue. Vê-se num longo conluio que leva a uma prótese entreaberta. Ele entra. Lascívia está sentada num trunfo em frente ao seu pinochet, penteando-se. Lipídio, que sempre carrega consigo um fanfarrão (instrumento primitivo de sete cordas), começa a cantar uma balada. Lascívia bate palmas e chama:

Cisterna! Vanglória!

São suas escravas que vêm prepará-la para os ritos do amor. Lipídio desfaz-se de suas roupas — o satrapa, o lúmpen, os dois fátuos — até ficar só de reles. Dirige-se para a cama cantando uma antiga minarete. Lascívia diz:

Cala-te, sândalo. Quero sentir o seu vespúcio junto ao meu passepartout.

Atrás de uma cortina, Muxoxo, o algoz, prepara seu longo cadastro para cortar a cabeça do trovador.

A história só não acaba mal porque o cavalo de Lipídio, Escarcéu, espia pela janela na hora em que Muxoxo vai decapitar seu dono, no momento entregue ao sassafrás, e dá o alarme. Lipídio pula da cama, veste seu reles rapidamente e sai pela janela, onde Escarcéu o espera.

Lascívia manda levantarem a ponte de safena, mas tarde demais. Lipídio e Escarcéu já cavalgam por motins e valiuns, longe da vingança de Lascívia.”

Luís Fernando Veríssimo, in Palavreado - em que se fala do reino de Cântaro. Mas também de Pantufo, Rei da Cizânia, cuja capital é Nova Velha (a Velha Velha fora destruída por um paroxismo).

quinta-feira, 26 de junho de 2025

Luigi Pirandello (1867-1936)


Juro que não quis ofender o senhor Lavaccara, nem da primeira nem da segunda vez, como andam a dizer na aldeia.

O senhor Lavaccara pôs-se a falar-me de um seu porco e queria convencer-me de que era um animal inteligente.

Eu então perguntei-lhe:

- Desculpe, o porco é magro?

E eis que o senhor Lavaccara olha para mim como se a pergunta tivesse a intenção de ofender, não o animal de que era proprietário, mas ele próprio.

Respondeu-me:

- Magro? Pesa mais de um quintal!

E eu então disse-lhe:

- Desculpe, julga que é inteligente?

Estávamos a falar do porco. Mas o senhor Lavaccara, com toda aquela sua rósea fartura de carnes tremulantes, julgou que eu depois de ofender o porco o quisesse ofender agora a ele, como se tivesse dito que em geral a gordura exclui a inteligência. Mas, repito, era do porco que estávamos a falar. Não tinha pois o senhor Lavaccara que fazer uma car tão feia, nem que perguntar-me:

- Então eu, na sua opinião?...

Apressei-me a responder-lhe:

- Mas que é que o senhor tem que ver com isto, caro senhor Lavaccara? O senhor é porventura um porco? Desculpe. Quando o senhor come com esse belo apetite que Deus lhe conserve até ao fim da vida, para quem come? Come para si, não engorda para os outros. O porco pelo contrário julga que come para ele e está mas é a engordar para os outros.

Não se riu. Ficou ali plantado, duro, na minha frente, mais feio ainda do que já era. E eu então, para o demover, acrescentei com precaução:

- Suponhamos, suponhamos, caro senhor Lavaccara, que o senhor, com a sua bela inteligência, era um porco. Desculpe, o senhor comia? Eu não. Quando visse trazerem-me a comida grunhia horrorizado: “Livra! Muito obrigado meus senhores, comam-me magro!” Quando um porco é gordo significa que ainda não compreendeu isto; e se não compreendeu isto, pode porventura ser inteligente? Por isso lhe perguntei se o seu era magro. Respondeu-me que pesa mais de um quintal; desculpe, senhor Lavaccara, será um belo porco, não digo que não, mas não é com certeza um porco inteligente.

Pareceu-me que não podia ter dado ao senhor Lavaccara uma explicação mais clara do que esta. Mas não valeu de nada. Ou melhor, é garantido que piorei as coisas; dei-me conta disso conforme ia falando. Quanto mais eu me esforçava por tornar clara a explicação mais o senhor Lavaccara fechava o rosto, a mastigar:

- Pois...pois...

Porque decerto lhe pareceu que pondo eu o animal a raciocinar como um homem, ou melhor, pretendendo eu que aquele seu animal raciocinasse como um homem,não queria falar do animal, mas dele.

E estamos nisto. Sei que o senhor Lavaccara anda de um lado para o outro a repetir as minhas palavras para fazer ressaltar a fatuidade delas aos olhos de todos, para que todos lhe digam que aquelas minhas palavras não faziam sentido referidas a um animal, o qual julga também comer para si próprio e não pode saber que os outros o estão a engordar para eles; um porco nasce porco, quanto a isso nada pode fazer. É pois evidente que tem que comer como um porco, e dizer que o não deveria fazer, mas sim recusar a comida para que o comam magro, é um disparate, porque um tal objectivo não pode nunca passar pela cabeça de um porco.

Estamos perfeitamente de acordo. Mas se foi ele, santo Deus, que me veio com aquela cantiga, em todos os tons, ele, o senhor Lavaccara, de que aquele animal só lhe faltava falar! E eu quis justamente demonstrar-lhe que não podia possuir, nem possuía, por sorte para ele, essa famosa inteligência humana; porque um homem pode permitir-se o luxo de comer como um porco, sabendo que depois de estar gordo não será degolado; mas um porco não, e não. Por Deus, parece-me tão claro!

Ofender?, mas ofender o quê?; eu quis pelo contrário defender o senhor Lavaccara de si próprio, conservar intacto o meu respeito por ele, e livrá-lo até da sombra do remorso de ter vendido aquele seu animal para ser degolado na festa do Senhor Jesus das Naus. Mas ainda me zango mesmo a sério e digo ao senhor Lavaccara que ou o porco dele era um porco vulgar e não possuía aquela famosa inteligência humana que anda a apregoar, ou que o verdadeiro porco é ele, o senhor Lavaccara; então sim, que o ofendo.

Questão de lógica, meus senhores! E depois entra aqui na dança a dignidade humana que me interessa salvar a todo o custo, e não a poderei salvar senão com a condição de convencer o senhor Lavaccara e todos aqueles que lhe dão razão de que os porcos gordos não podem ser inteligentes, porque se esses porcos falam uns com os outros, como o senhor Lavaccara pretende e anda a propalar, não seriam eles mas a dignidade humana o que andam a degolar nessa festa do Senhor Jesus das Naus. (…)

    O Senhor Jesus das Naus, in Contos Escolhidos (tradução de Carmen Gonzalez) Editorial Verbo

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sexta-feira, 18 de abril de 2025

Daniel Abrunheiro

Cerrou o livro e ruminou em torno um olhar pacificado pela digestão. O estabelecimento chamava-se café Colonial e era uma nave dormente. Ficava do outro lado da avenida, em oposição à gare rodoviária. No mostrador de vidro do balcão, a comida, como quase nunca a vida, era a cores. A uma das cadeiras da mesa de Camilo, havia uma revista com Lady Di a fazer capa. À mesa da janela, duas senhoras que eram putas comiam pastéis de bacalhau. “Há sempre putas perto das rodoviárias e dos caminhos-de-ferro” - diria Camilo Ardenas, sem abrir a boca, se pudesse lembrar-se de passados comboios, de pretéritas rodoviárias e de idas putas. Aquelas duas madalenas empurravam o bolo alimentar com golfadas de cerveja preta.

Uma estava toda vestida, calçada e brincada de lilás. A mastigação aberta traía-lhe um dente azul, em cujo azulejo rechinava de saliva um fiapo ambulatório de bacalhau. A outra envergava verde e azul como uma varejeira. Suspendia da cabeça pequenina um largo par de brincos de plástico brilhante que semelhavam olhos laterais e doentes. As duas levantaram-se e saíram porta fora. Ao sair, eram de novo soldados em combate.

Camilo Ardenas entrou na sinopse de Diana Spencer. Comoveu-o a melancolia interminável da princesa viva e quando esposa de um príncipe que parecia ter nascido para consultar clandestinamente, no 221-B de Baker Street, a perícia de Sherlock Jeremy Brett Holmes a propósito de cornos conjugais. Pediu mais um café, abandonou a revista e espreitou a rua.

Tinha parado de chover. Enquanto o café não vinha, Camilo foi à porta consultar o céu. A maravilha era a chuva ter parado em plena queda. Erguendo a cabeça e o olhar, foi-lhe possível ver que a chuva, congelada em plena precipitação, era agora uma espécie de lustre de agulhas suspensas, tais varetas de aço que só esperavam por uma ordem de Cima para cair e matar de novo os mortos e quanta memória deles sobrasse nos vivos. Camilo Ardenas gostou desta avaria da Natureza. Recompensou-o sentir que também as coisas podiam apresentar uma desordem natural, um esplendor de sucata, uma demência caprichosa, um capricho alcoólico. Tornou à mesa, aguardado pela chávena nova, mas não já por Diana. Pediu um cálice de porto e para telefonar. Telefonou. Não o atenderam.

A mesa que tinha sido das putas estava agora ocupada por uma senhora vasta. Era um porta-aviões ginecológico torpedeado sem clemência pela idade. Camilo calculou-lhe oitenta anos. Não era para menos. Maquilhada de alguns oito boiões diferentes, parecia sonolenta, bocejando de sob os cremes. O rímel pesava-lhe nas pestanas como lixo num toldo. A boca era-lhe um trapo escarlate. O pescoço descia por camadas geológicas. Os seios, enrodilhados em arame e tela, subiam num decote murcho. As mãos de pergaminho terminavam em ossos sardentos e tão couraçados de anéis, que se diria usar soqueiras de gangster. Asfixiados e esquecidos no chão dentro de sapatos de salto alto, os joanetes eram rotundos como hematomas de cálcio úrico. Enroupara-se com uma elegância anacrónica e piedosa de coquette.”

Daniel Abrunheiro

in Terminação do Anjo - Portugália Editora, 2008


domingo, 6 de abril de 2025

William Faulkner

 
 

Meteu silenciosamente pela alameda e mal chegou à cancela aspirou o perfume da madressilva. A casa encontrava-se às escuras, silenciosa e imóvel, como se o refluxo de todo o tempo a tivesse encalhado no espaço. O concerto dos insectos estava reduzido a um murmúrio monótono, exausto, espalhado por toda a parte e por lado nenhum, como se o som fosse a agonia química de um mundo abandonado, nu, e moribundo, na superfície do fluído onde vivia e respirava. A Lua pairava em cima, mas sem luz; a Terra jazia em baixo, mas sem trevas. Abriu a porta, dirigiu-se às apalpadelas para o quarto e acendeu a luz. A voz da noite – os insectos ou lá o que fosse – entrara como ele em casa. Compreendeu de súbito que se tratava do atrito da Terra no seu eixo, ao aproximar-se o momento em que decidiria se continuaria a girar ou se pararia para sempre, transformada numa bola imóvel no espaço que arrefecia e através do qual o odor forte da madressilva serpenteava como fumo frio.”

in Santuário (tradução de Fernanda Pinto Rodrigues, edição Minerva de bolso, 1973)

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terça-feira, 7 de maio de 2024

segunda-feira, 15 de agosto de 2022

Salman Rushdie


“’Respeito pela religião’ tornou-se uma frase de código que significa ‘medo da religião’. As religiões, como todas as outras ideias, merecem críticas, sátiras e, sim, nosso destemido desrespeito.”

Salman Rushdie

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sábado, 25 de junho de 2022

O sentimentalismo Osório


 

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O sentimentalismo, em Portugal, não é uma mera forma de expressão. É a expressão do eu em todas as suas formas – quase sempre enquistadas, porém melífluas, repenicadas, delicodoces, xaroposas.

Na literatura, o género, que já exasperava Herculano, tem sido detractado, com mais ou menos virulência, desde pelo menos Cesário Verde até Alberto Pimenta. Por motivos diversos, como é óbvio (Agustina, por exemplo, considerava que a exploração do sentimento era um artifício fácil e, como tal, vulgar, pouco elevado, até mesmo desonesto e estendia generosamente esta sua implicância à música, a mais emocional das artes, que também não poupava nos seus sibilinos, mas abrasivos, comentários).

O sentimentalismo foi, no entanto, sublimado por outros de não menor talento e atingiu os píncaros, no cânone da língua, com Antero, António Nobre (a nossa melhor poetisa, no parecer de Pascoaes) ou Florbela Espanca (Camilo é um caso à parte - condenado à vida a viver do sentimentalismo, apenas com o seu humor sombrio, um génio explosivo, um sarcasmo inflamável e um vocabulário incandescente e rebarbativo, ele criou toda aquela pirotecnia exuberante que transfigurou o género - em algo completamente diferente – numa espécie, ora abertamente equívoca, de recalcitrante comédia negra; ora veladamente explícita, de impenitente tragédia bufa).

Ou seja, o sentimentalismo atingiu altos padrões estéticos sempre que foi tocado pelo génio – como o de Antero, tomado pela vertigem do absoluto; ou o de António Nobre, contagiado pela derisão e pela auto-ironia; ou o de Florbela, possuída pelo destrambelho associal e pla ousadia sequiosa de infinito.

Nos nossos dias, o sentimentalismo é ainda bastamente cultivado, por exemplo por Valter Hugo Mãe ou António Lobo Antunes; mas só triunfa realmente fora do âmbito da literatura – por todo o lado, no jornalismo, na publicidade e até na comunicação política. Mas é sobretudo quando rasteja, isto é, quando é tocado pela canalhice e pela mediocridade – pla vulgaridade dos métodos e pla baixeza dos propósitos - que ele ganha asas, muitos laiques, compartilhamentos e comentários aprovadores e entusiasmados nas redes sociais e a consagração da popularidade. Um dos mais garbosos praticantes desta modalidade é Luís Osório.

E quem é esse Osório? Perguntais-vos vós.

- Bem, Osório é um xcritor e jornalista que escreve livros, embora o que ele escreve não se enquadre exactamente naquilo que se chama literatura, ou jornalismo. Osório tornou-se conhecido por ter escrito um livro sobre o pai e um sobre a mãe (o pai foi um comunista e homossexual que enfrentou a morte, de fatal doença contagiosa, com valentia e dignidade - a mãe foi uma senhora que escolheu dar-se a própria morte) nos quais chafurdou, sem escrúpulos nem pudor, na vida e intimidade dos progenitores e se empenhou em demonstrar, contra todas as naturais expectativas, a nulidade do legado dos genes e a inexorabilidade da redenção, isto é, do final feliz (o busílis deste género de sentimentalismo) - pois ele próprio (tudo o que Osório escreve é eminentemente sobre si mesmo) é hoje um perfeitamente convencional chefe de família, feliz pai de três pimpolhos perfeitamente convencionais e perfeitamente integrado na boa sociedade e no regime, porque até já “participou em comissões governamentais, coordenou a comunicação política de uma campanha presidencial e até é consultor empresarial” e tudo (tudo feitos fora do alcance de qualquer vulgar filho-de-comunista, ou filho-de-comuna de lineu, como é sabido). Além disto, também dirigiu jornais, uma estação de rádio e até já imaginou um programa de televisão e dirigiu uma vez uma peça de teatro. Hoje escreve postais diários, no face book. Crónica social e tal.

Mas senhor, porque vos agastais tanto com tal prosa, se não há nenhum motivo para que a continueis a ler, pensais vós.

- Pois pensais muito bem, jamais leria tais postas de merda se, em verdade vos digo, elas me não aparecessem, continuada e impunemente - para que as beba com os olhos, como dizia Fernando Pessoa - escarrapachadas no meu mural, piedosamente compartilhadas por alminhas devotas do santo sentimento. E se, quando assombrado com água benta, umbiguismo e presunção, não se apoderasse de mim, como de Luis Buñuel e do divino marquês, uma “cólera divina”. Aí tendes dois porquês.

E como é que ele faz para cativar aquele público (cada vez mais vivo, numeroso e ávido do que nunca) que esmifrou o génio do Camilo e lhe abrasou a visão e a mioleira? Perguntais-vos vós adredemente.

- Pois bem, titila-lhe a glândula túrgida da sensibilidadezinha à flor da pele, comicha-lhe a mucosa do ego empático e inflama-o, insinuante e insidioso, com frases curtas, doces evocações, exemplos melados, conspícuas revelações, inconfidências exclusivas, com muito enfoque nos bastidores, no episódico, no anedótico (em momentos, pormenores, detalhes, pequenas circunstâncias) sempre muito pessoal, muito intimista, muito sofrido, muito visceral, muito pungente, muito comovido, muito lacrimal, muito piegas, muito coscuvilheiro, muito lambe-cus, muito mórbido, muito enjoativo, muito repugnante. Tudo isto sobre um fundo de moralzinha mui serôdia e fraldiqueira coberto por um manto diáfano aparentemente desempoeirado, quase progressista, mas suficientemente palatável para o leitor que se comove por-tudo-e-por-nada e se deleita em baba e ranho mas não se engulha demasiado com o artifício fácil e com o senso-comum reaccionário e conformista, desde que venha tudo embrulhado em vocabulário muito mais acessível.

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sexta-feira, 11 de março de 2022

Stefan Zweig


 

A maior parte das pessoas têm uma imaginação atenuada. O que não as toca directamente, mesmo se enfiado como uma ponta aguçada em pleno cérebro, nem chega a comovê-las; mas se diante de seus olhos, ao alcance imediato da sua sensibilidade, se produz qualquer coisa, mesmo de pouca importância, logo borbulha nelas uma paixão desmesurada. Então elas compensam, numa certa medida, a sua indiferença do costume por uma veemência deslocada e exagerada.

Stefan Zweig

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sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Benjamin Péret












O maravilhoso está em todo o lado, 

dissimulado dos olhares do vulgo, 

mas pronto a explodir como uma bomba relógio

Benjamin Péret

 

terça-feira, 24 de novembro de 2020

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Graciliano Ramos


 

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Como já referi algures neste blogue, hoje quase só releio. Ultimamente tenho andado às voltas com São Bernardo e Vidas Secas. Duas pérolas da língua portuguesa. Graciliano Ramos. Um Clássico, “esse sertanejo de Palmeira dos Índios nasceu clássico, um clássico brasileiro”, como referiu o seu amigo Jorge Amado. Conciso (frases curtas, sucessivas - como traços e pontos que, implacáveis, de premeditados, compõem um desenho magistral). Quase esquálido. Sem ornatos nem violetas. No osso. E, no entanto, de uma tensão e uma intensidade exuberantes, quase expressionista.

Tentei desenhar-lhe um retrato assim sucinto. Receio, todavia, que não tenha chegado nem perto da eloquência que revela o que ele mesmo fez de si próprio aos cinquenta e seis anos de idade (haveria de morrer cinco anos depois).

Graciliano Ramos 

Nasceu em 1892, em Quebrangulo, Alagoas.

Casado duas vezes, tem sete filhos.

Altura 1,75.

Sapato n.º 41.

Colarinho n.º 39.

Prefere não andar.

Não gosta de vizinhos.

Detesta rádio, telefone e campainhas.

Tem horror às pessoas que falam alto.

Usa óculos. Meio calvo.

Não tem preferência por nenhuma comida.

Não gosta de frutas nem de doces.

Indiferente à música.

Sua leitura predileta: a Bíblia.

Escreveu “Caetés” com 34 anos de idade.

Não dá preferência a nenhum dos seus livros publicados.

Gosta de beber aguardente.

É ateu. Indiferente à Academia.

Odeia a burguesia. Adora crianças.

Romancistas brasileiros que mais lhe agradam: Manoel Antônio de Almeida, Machado de Assis, Jorge Amado, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz.

Gosta de palavrões escritos e falados.

Deseja a morte do capitalismo.

Escreveu seus livros pela manhã.

Fuma cigarros “Selma” (três maços por dia).

É inspetor de ensino, trabalha no “Correio do Manhã”.

Apesar de o acharem pessimista, discorda de tudo.

Só tem cinco ternos de roupa, estragados.

Refaz seus romances várias vezes.

Esteve preso duas vezes.

É-lhe indiferente estar preso ou solto.

Escreve à mão.

Seus maiores amigos: Capitão Lobo, Cubano, José Lins do Rego e José Olympio.

Tem poucas dívidas.

Quando prefeito de uma cidade do interior, soltava os presos para construírem estradas.

Espera morrer com 57 anos.

Por Graciliano Ramos

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quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Victor Hugo

 

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Como todos os pobres não tenho férias. Nunca tive. Não conheço locais longínquos e mais ou menos paradisíacos ou exóticos. ”Nunca lá estive”, como escreveu Joaquim Namorado a propósito dos mares do sul. Contudo, como também não sou inteligente, como Luis Buñuel, tenho muita imaginação.

Agora, por exemplo, estou em Noventa e três. 1793. O quinto ano da revolução francesa. O ano do terror e da guerra civil na Vendeia, orquestrada pelos monárquicos e financiada pela pérfida Albion e por todas as outras velhas monarquias da Europa.

“93 é a guerra da Europa contra a França e da França contra Paris. E o que é a Revolução? É a vitória da França sobre a Europa e de Paris sobre a França. Daí a imensidade desse minuto espantoso, maior que todo o resto do século.” E é o último romance (editado em 1874) desse génio de imaginação prodigiosa e verbo luminoso que é Victor Hugo.

Já estive na taberna da rua do Pavão e escutei Marat, Danton e Robespierre. E na Convenção que, logo em Janeiro, votou a morte do rei “Quem via a assembleia deixava de pensar na sala. Quem via o drama deixava de pensar no teatro. Nada de mais disforme e de mais sublime. Um monte de heróis, um rebanho de cobardes. Feras sobre uma montanha, répteis num pântano. Ali formigavam, acotovelavam-se, ameaçavam-se e viviam todos esses combatentes que hoje são fantasmas.” E já conheci o impiedoso marquês de Lantenac, o magnânimo Gauvin e o implacável Cimourdain e muitas outras personagens latejantes de vida saídas de uma pena incandescente de puro génio e fervilhante imaginação.

Por isto não estou cá. Tirei apenas uns minutos para rabiscar um retrato do velho mestre. Fui.

Se me procurarem digo como o abade Sieyés ao seu criado: ”Si M. de Robespierre vient, vous lui direz que je n’y suis pas. Estou em Noventa e três.

 

segunda-feira, 25 de maio de 2020

Maria Velho da Costa (1938-2020)


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Todo o amor é abolição de limites até do próprio corpo
in Corpo verde
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Conheci Maria Velho da Costa num pequeno livro de poemas eróticos ilustrado por Júlio Pomar. Trata-se de Corpo Verde, uma edição de 1979, com 46 páginas, que eu ainda conservo como um dos mais preciosos tesouros da minha pobre biblioteca. Na época (por volta de 1980) eu tinha dezoito anos, era então um jovem com veleidades artísticas e o que me levou a adquiri-lo foram, confesso, os desenhos - a carvão, de uma factura quase caligráfica e intuitiva numa soberba liberdade de improviso e de evocação - de Pomar. Foram eles que me levaram a Maria Velho da Costa.
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Foi a descoberta de algo totalmente novo para mim (como referi, eu era um tanto verde, receio, tanto de corpo como de espírito). O erotismo no feminino. O sexo, na óptica da fêmea - na voz (pela palavra) de uma mulher. Sem arroubos pseudo-místicos ou sentimentais, nem eufemismos nem lugares-comuns nem vulgaridades vácuas. 
Não há nada mais magnífico e belo do que uma mulher adulta completamente livre, com voz própria e potente, e talento a condizer e que não se importa de os usar.
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sábado, 16 de maio de 2020

Isaac Asimov


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O anti-intelectualismo é uma ameaça constante à nossa vida política e cultural, 
alimentado pela falsa noção de que democracia significa que 
"a minha ignorância é tão boa como o teu conhecimento"
Isaac Asimov
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terça-feira, 5 de maio de 2020

Mais um postal da pandemia (nº13, foda-se))

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Aldir Blanc morreu. Covid-19.
Este postal chegou-me em forma de tuíte. De outro poeta, Arnaldo Antunes:
Rubras cascatas / Jorravam das costas dos santos entre cantos e chibatas”. Quando morre o autor de um verso como esse, entre tantos outros memoráveis, só nos resta chorar e reverenciar. “Glória a todas as lutas inglórias”. Viva Aldir Blanc!
E Ruy Castro, na Folha de S.Paulo, dá mais exemplos.
Viva Aldir Blanc. E putaquepariu o coronavírus.
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sábado, 18 de abril de 2020

Luís Sepúlveda (1949-2020)

Não, ao contrário de Ruben Fonseca, por exemplo, Luis Sepúlveda não era um grande escritor. Mas, tal como Buñuel, eu também “não respeito ninguém só porque é um bom escritor. O mundo está cheio deles. São precisas mais qualidades”.
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É verdade que aprecio o talento dos grandes escritores, alguns deles - eu sou sensível ao verdadeiro génio - colhem mesmo a minha sincera admiração, como Ruben Fonseca. Mas se “o mundo está cheio deles” também é verdade que alguns são homens bem pequenos: o talento convive neles amancebado com a mais crua e medíocre miséria humana.
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O respeito é outra coisa. É algo que dedico apenas aos grandes homens. Àqueles que, como simples humanos, se destacam dessa precária e sempre contraditória condição, a mediania. Àqueles que nunca se arrependeram, nem se envergonharam, nem se lastimaram de um único segundo da sua vida - como Luís Sepúlveda. 
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