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quarta-feira, 29 de março de 2023

O turismo da água esmeralda

Foto daqui, com a devida vénia

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Existe, no vale do baixo-Mondego, em Maiorca, no meio de uma paisagem devastada pelo mais ávido e desenfreado extractivismo, uma monumental cratera de uma antiga pedreira abandonada onde o acúmulo de precipitação, ou um qualquer fenómeno geológico ainda por estudar, fez o milagre de criar uma lagoa de águas naturalmente estagnadas, mas maravilhosamente tingidas com a cor das esmeraldas.

Situada em propriedade privada e “descoberta” por acaso, por jovens adolescentes maiorquenses, nas suas sempre irrequietas e curiosas explorações estivais, a lagoa depressa se tornou uma dor de cabeça para os pais dos miúdos e, apesar de não ser sinalizada nem anunciada como tal, uma verdadeira “atracção turística” na região - as redes sociais regurgitam de selfies de labregos com a patética lagoa em fundo. Nesta, no entanto, segundo o inefável site portugaldenorteasul Não se aconselham banhos, dado ser um local semi-vedado (a cerca de protecção foi cortada) e não se conhecerem as características químicas da água, pensando-se que possa conter químicos relacionados com a antiga exploração da pedreira.”

Esta lagoa encantada fica muito perto dos arrozais e dos canais que os irrigam e não muito distante do rio Mondego onde, pouco a jusante, é captada a água que abastece as torneiras da cidade da Figueira da Foz. A sua quota mais baixa (o fundo da cratera) situa-se bem abaixo do leito do rio, ao nível dos lençóis freáticos e, no entanto, as características químicas e a exótica coloração das suas águas nunca despertaram a curiosidade de nenhuma universidade portuguesa (talvez porque não se enquadre no seu estrito modelo de negócio de lojas-que-vendem-títulos-e-diplomas) ou a mínima inquietação no proprietário; nem sequer inspiraram qualquer acção consequente das autoridades sanitárias competentes.

Bem sei que num país que se rege por leis isto nunca teria sido possível. Mas em Portugal, onde o respeitinho pela propriedade privada é tanto que esta nunca se discute (sobretudo com quem tem muitas), nunca ocorreu às autoridades competentes mandar o proprietário aterrar a cratera da sua pedreira abandonada (com sólidos inertes, como manda a lei, e não com resíduos tóxicos, como já foi tentado). Também nunca ocorreu a um organismo público ordenar um estudo científico sério sobre o impacto daquela lagoa na vida animal (selvagem e doméstica), sobre o que vegeta nas suas margens, sobre a real composição química daquelas estranhas e glaucas águas paradas e sobre a possível contaminação de aquíferos e lençóis de água adjacentes.

A verdade é que, num país sério e num município que se rege pelo bom-senso e pelo bom-gosto, um lugar destes nunca poderia ser uma atracção turística, mas sim um local de estudo. De estudo científico sério e rigoroso de um fenómeno da natureza provocado pela acção nociva do homem, de algo que correu mal, anómalo, enigmático e estranhamente belo, mas inquietante porque o seu potencial de perigosidade para a saúde humana e para o meio ambiente ainda está, lamentavelmente, por estudar.

Só a uma classe empresarial pervertida e a uma classe política apatetada, ambas completamente destituídas de bom senso e de sentido do ridículo, é que pareceria bem construir um resort turístico à volta de um charco inquinado.

Pois bem, é precisamente nesta lagoa, ou nos terrenos que a circunvizinham, que a Mota-Engil (é esta a graça do proprietário) quer agora construir todo “um complexo turístico de qualidade superior e arquitectonicamente enquadrado na envolvente natural”. Com vista de Maiorca e dos seus arrozais. E facilidade de acesso à A14, claro. Mas há mais: segundo o ”jornal” AsBeiras, o executivo figueirense, na pessoa do seu represidente, já recebeu os representantes da empresa, que lhe mostraram os primeiros esboços do complexo turístico. Logo a seguir, ainda segundo AsBeiras, “têm-se multiplicado os contactos entre a firma e os serviços de Urbanismo do município”.

Mas será isso possível? - perguntais vós.

Num país sério não o seria. Mas Portugal não é um país sério. E a Figueira da Foz é até um município bastante cómico, onde tudo é possível, como nos desenhos animados. Na Figueira tudo é absurdo ou às avessas e o nonsense é o único sentido que tem a mais perfeita normalidade. Senão, vejamos:

- A Figueira não tem maternidade (as figueirensas que querem parir vão fazê-lo a cinquenta quilómetros de distância, em Coimbra; as mais apressadas fazem-no a bordo da ambulância, na borda da A14) mas tem hospital: fica no meio de um parque de estacionamento no outro lado do rio, no meio de uma localidade que se chama Cova. Já o Casino, está no meio da cidade, e não tem parque de estacionamento.

- Na Figueira as empresas importadoras e exportadoras estão quase todas localizadas a sul do concelho ou nos concelhos a sul. - Onde tem a Figueira o seu porto comercial? – pois, como já devem ter adivinhado, na margem norte.

- A Figueira é um importante centro pesqueiro. A maior parte do pescado tem como destino de consumo a própria cidade, o seu mercado e restaurantes e todos os que ficam a norte do concelho, até Coimbra ou mais além. – Pois onde tem a Figueira o seu porto de pesca e a lota? – exactamente: na margem sul, como também já devem ter adivinhado.

- A Figueira tem um teatro que pertence a um clube de futebol. Este não pratica futebol, nem teatro. Só bisca lambida, lerpa e levantamento de vidro (copofonia), campeões.

- A Figueira tem um monumento nacional (o Forte de Stª Catarina) que é um estabelecimento que vende cerveja a copo. A sua capela seiscentista é o armazém do vasilhame.

- A Figueira tem um parque de campismo que fica mesmo no meio da cidade, ao pé de um grande supermercado (para os amantes mais platónicos, e pletóricos, do bucolismo e da natureza e assim).

- A Figueira tem um estádio, mas não tem desporto. Não tem público. Não pratica nem assiste. A única coisa realmente competitiva que os figueirenses pagam para ver são as marchas populares, ou de Carnaval. Assim, duas vezes por ano, plo Carnaval e plo S. João, encerram a avenida, montam umas bancadas pré-fabricadas de cada lado, cercam-na de taipais, por causa dos mirones, e depois pagam bilhetes para ver o desfile. É todos os anos isto.

- Na Figueira o presidente da Câmara Municipal é Santana Lopes.

É ele que fala com os representantes da empresa proponente do grandioso empreendimento, a Mota-Engil. Ele conhece muito bem um dos administradores. Foi ele que, quando foi primeiro-ministro, o nomeou ministro do mar, perante a maior perplexidade do próprio e de todos os presentes e assistentes. Trata-se de um verdadeiro especialista em águas profundas. Chama-se Paulo Portas.

Não me espantará muito que a ambos lhes pareça bem um complexo turístico à volta de um charco inquinado e fundo.

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