Foto daqui, com a devida vénia |
Existe, no vale do baixo-Mondego, em Maiorca, no meio de
uma paisagem devastada pelo mais ávido e desenfreado extractivismo, uma
monumental cratera de uma antiga pedreira abandonada onde o acúmulo de precipitação,
ou um qualquer fenómeno geológico ainda por estudar, fez o milagre
de criar uma lagoa de águas naturalmente estagnadas, mas
maravilhosamente tingidas com a cor das esmeraldas.
Situada em propriedade privada e “descoberta” por
acaso, por jovens adolescentes maiorquenses, nas suas sempre irrequietas e curiosas
explorações estivais, a lagoa depressa se tornou uma dor de cabeça para os pais
dos miúdos e, apesar de não ser sinalizada nem anunciada como tal, uma
verdadeira “atracção turística” na região - as redes sociais regurgitam de selfies
de labregos com a patética lagoa em fundo. Nesta, no entanto, segundo o
inefável site portugaldenorteasul “Não se aconselham banhos, dado ser um local semi-vedado (a
cerca de protecção foi cortada) e não se conhecerem as características químicas
da água, pensando-se que possa conter químicos relacionados com a antiga
exploração da pedreira.”
Esta lagoa encantada
fica muito perto dos arrozais e dos canais que os irrigam e não muito distante
do rio Mondego onde, pouco a jusante, é captada a água que abastece as
torneiras da cidade da Figueira da Foz. A sua quota mais baixa (o fundo da
cratera) situa-se bem abaixo do leito do rio, ao nível dos lençóis freáticos e,
no entanto, as características químicas e a exótica coloração das suas
águas nunca despertaram a curiosidade de nenhuma universidade portuguesa
(talvez porque não se enquadre no seu estrito modelo de negócio de lojas-que-vendem-títulos-e-diplomas)
ou a mínima inquietação no proprietário; nem sequer inspiraram qualquer acção
consequente das autoridades sanitárias competentes.
Bem sei que num país que se
rege por leis isto nunca teria sido possível. Mas em Portugal, onde o respeitinho
pela propriedade privada é tanto que esta nunca se discute (sobretudo
com quem tem muitas), nunca ocorreu às autoridades competentes mandar o
proprietário aterrar a cratera da sua pedreira abandonada (com sólidos inertes,
como manda a lei, e não com resíduos tóxicos, como já foi tentado). Também
nunca ocorreu a um organismo público ordenar um estudo científico sério sobre o
impacto daquela lagoa na vida animal (selvagem e doméstica), sobre o que vegeta
nas suas margens, sobre a real composição química daquelas estranhas e glaucas
águas paradas e sobre a possível contaminação de aquíferos e lençóis de água
adjacentes.
A verdade é que, num país
sério e num município que se rege pelo bom-senso e pelo bom-gosto, um lugar
destes nunca poderia ser uma atracção turística, mas sim um local de estudo. De
estudo científico sério e rigoroso de um fenómeno da natureza provocado pela
acção nociva do homem, de algo que correu mal, anómalo, enigmático e
estranhamente belo, mas inquietante porque o seu potencial de perigosidade para
a saúde humana e para o meio ambiente ainda está, lamentavelmente, por
estudar.
Só a uma classe empresarial
pervertida e a uma classe política apatetada, ambas completamente destituídas
de bom senso e de sentido do ridículo, é que pareceria bem construir um
resort turístico à volta de um charco inquinado.
Pois bem, é precisamente
nesta lagoa, ou nos terrenos que a circunvizinham, que a Mota-Engil (é esta a
graça do proprietário) quer agora construir todo “um complexo turístico
de qualidade superior e arquitectonicamente enquadrado na envolvente natural”.
Com vista de Maiorca e dos seus arrozais. E facilidade de acesso à A14, claro. Mas
há mais: segundo o ”jornal” AsBeiras, o executivo figueirense, na pessoa
do seu represidente, já recebeu os representantes da empresa, que lhe mostraram
os primeiros esboços do complexo turístico. Logo a seguir, ainda segundo
AsBeiras, “têm-se multiplicado os contactos entre a firma e os
serviços de Urbanismo do município”.
Mas será isso possível? -
perguntais vós.
Num país sério não o seria.
Mas Portugal não é um país sério. E a Figueira da Foz é até um município bastante
cómico, onde tudo é possível, como nos desenhos animados. Na Figueira tudo é
absurdo ou às avessas e o nonsense é o único sentido que tem a mais
perfeita normalidade. Senão, vejamos:
- A Figueira não tem
maternidade (as figueirensas que querem parir vão fazê-lo a cinquenta
quilómetros de distância, em Coimbra; as mais apressadas fazem-no a bordo da ambulância,
na borda da A14) mas tem hospital: fica no meio de um parque de estacionamento
no outro lado do rio, no meio de uma localidade que se chama Cova. Já o Casino,
está no meio da cidade, e não tem parque de estacionamento.
- Na Figueira as empresas
importadoras e exportadoras estão quase todas localizadas a sul do concelho ou
nos concelhos a sul. - Onde tem a Figueira o seu porto comercial? – pois, como
já devem ter adivinhado, na margem norte.
- A Figueira é um importante
centro pesqueiro. A maior parte do pescado tem como destino de consumo a
própria cidade, o seu mercado e restaurantes e todos os que ficam a norte do
concelho, até Coimbra ou mais além. – Pois onde tem a Figueira o seu porto de pesca
e a lota? – exactamente: na margem sul, como também já devem ter adivinhado.
- A Figueira tem um teatro que
pertence a um clube de futebol. Este não pratica futebol, nem teatro. Só bisca
lambida, lerpa e levantamento de vidro (copofonia), campeões.
- A Figueira tem um monumento
nacional (o Forte de Stª Catarina) que é um estabelecimento que vende cerveja a
copo. A sua capela seiscentista é o armazém do vasilhame.
- A Figueira tem um parque de
campismo que fica mesmo no meio da cidade, ao pé de um grande supermercado
(para os amantes mais platónicos, e pletóricos, do bucolismo e da natureza e
assim).
- A Figueira tem um estádio, mas
não tem desporto. Não tem público. Não pratica nem assiste. A única coisa realmente
competitiva que os figueirenses pagam para ver são as marchas populares, ou de
Carnaval. Assim, duas vezes por ano, plo Carnaval e plo S. João, encerram a
avenida, montam umas bancadas pré-fabricadas de cada lado, cercam-na de taipais,
por causa dos mirones, e depois pagam bilhetes para ver o desfile. É todos os
anos isto.
- Na Figueira o presidente da
Câmara Municipal é Santana Lopes.
É ele que fala com os
representantes da empresa proponente do grandioso empreendimento, a Mota-Engil.
Ele conhece muito bem um dos administradores. Foi ele que, quando foi
primeiro-ministro, o nomeou ministro do mar, perante a maior
perplexidade do próprio e de todos os presentes e assistentes. Trata-se de um
verdadeiro especialista em águas profundas. Chama-se Paulo Portas.
Não me espantará muito que a ambos lhes pareça bem
um complexo turístico à volta de um charco inquinado e fundo.
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