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Na minha infância o futebol era uma metáfora do fantástico
e do imponderável. Hoje em dia, tal como na vida, para mim no futebol também já não há
mistério. Empresarialisou-se. Tornou-se um negócio à escala mundial,
programado, sem surpresas, demasiado previsível: já não há lugar nele para Manés
Garrincha, Georges Bests, Diegos Maradonas ou Victor-Baptistas.
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Se, como já ouvi alguém, uma equipa de futebol deve ser
como a big band de Duke Ellington -
uma orquestra de músicos inspirados e solistas geniais dirigida por um génio
inspirado - eu já vi jogar equipas assim: a Holanda de 1974 e o Brasil de 1982.
Perderam, é claro, e talvez tenha sido essa tragédia que precipitou o futebol
neste pesadelo resultadista obcecado
com a “eficácia”, previsível e aborrecido.
O que é facto é nunca mais vi
equipas “tocarem” assim. No futebol actual não há lugar para a alegria do jogo
(para quem não sabe, o futebol é um jogo
colectivo, tal como a música), nem para “músicos” inspirados como Sócrates (o doutor, não o inginheiro) ou Cruijff, nem para “directores d’orquestra” como Rinus Michels ou Tele
Santana. Apenas para paulosbentos e felipões; e Joachim Löw.
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Sim porque a Alemanha é uma orquestra afinada. Mas está
para a alegria do jogo mais ou menos como a orquestra de Paul Mauriat para a música:
não tem imaginação nem fantasia, nem Paul Gonsalves nem Johnny Hodges nem Ben
Webster, nem os outros todos; nem o Duke, claro. A Alemanha, no entanto, com o
seu futebol frio e burocrático tem sido sempre uma orquestra demolidora da bela
música do futebol maravilha. Foi assim em 1954 com a Hungria de Puskas e kocsis
(esta nunca cheguei a ver), em 1974 com a Holanda e em 1990 com a Argentina.
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Neste mundial deu para ver aliás que todas as equipas que
tentaram jogar com a Alemanha pelo resultado (para perder por poucos, para
empatar ou vencer por poucos) levaram muitos, à cabazada. À excepção do Gana
(uma equipa que lamentavelmente só a espaços parece conhecer e querer partilhar
o prazer do jogo) e da Argélia.
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A equipa de Islam
Slimani foi a única que esteve perto de poder vencer os alemões. Mas apesar do bom futebol não é
ainda uma big band das antigas:
falta-lhe a ousadia, a generosidade, o desprezo pela derrota e um je ne sais quoi que não consigo definir mas que talvez fosse o ingrediente capaz de transformar o boato - de
que a equipa de Slimani doaria o seu prémio de nove milhões de dólares aos
habitantes da Faixa de Gaza - numa notícia verdadeira. O futebol resgataria a
vida. E talvez também o meu antigo fascínio pelo imponderável, esse mistério que
é a esperança.
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A Faixa de Gaza, para quem não sabe, é a parcela do globo
com maior concentração de habitantes por metro quadrado. Estão aí confinados por um embargo que até lhes nega o acesso a ajuda humanitária porque dizque deusnossosenhor em
pessoa prometeu a sua terra em
exclusivo a uns senhores que não apreciam carne de porco à alentejana.
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