A nação é de todos,
a nação tem de ser igual para todos.
Se não é igual para todos,
é que os dirigentes que se
chamam estado,
se tornaram quadrilha
Aquilino
Ribeiro
(Quando os lobos uivam)
Para além da estupidez confesso que também convivo mal
com a injustiça. Reconheço que, num meio cultural permissivo a toda a sorte de
iniquidades, isso talvez faça de mim uma espécie de excêntrico; o que, de certo
modo, reduz a minha vida a uma melancólica misantropia, que eu tento comedir (ou sublimar) através do humor: em
doses homeopáticas de sarcasmo e derisão.
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Cultivo um conceito de cidadania, e de cidade, que não se harmoniza de todo com
o padrão da maior parte dos meus concidadãos. Estes, se aceitam pacífica e bovinamente
a desigualdade entre si, também aceitam, lamentavelmente com a mesma
naturalidade ruminante, os conceitos de cidade
nobre e de cidade pobre na gestão
do espaço público.
Penso que, se os cidadãos são, em princípio, todos
iguais, a cidade também o deveria
ser. Não tolero leis que consagrem o contrário - com arrepiante e medieval
banalidade – com a complacência resignada da maior parte dos cidadãos. Tenho
dificuldade em tolerar posturas municipais que tratam distintamente espaços de
cidadania (ruas, praças, parques, bairros, etc), que deveriam ser tratados de
forma igual.
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Na Figueira da Foz, curiosamente, os últimos exemplos de
urbanização projectados pelo anterior regime (no final dos anos sessenta) são
muito mais “iguais” do que os perpetrados pelo poder local democrático: apesar
de trabalharem para o eng Jordão (um autarca nomeado por um governo não eleito),
os urbanistas do gabinete de Alberto Pessoa, imbuídos do espírito de um certo modernismo e decerto influenciados pelo
exemplo, então recente, de Brasília, conseguiram impôr uma certa ideia de
cidade “igual para todos” – a mesma rua larga, o mesmo passeio amplo, o mesmo
lancil de calcário, a mesma calçada portuguesa, o mesmo candeeiro de iluminação (em aglomerado de pedra), a mesma placa toponímica, etc. - no bairro do cruzeiro
e na avenida oceânica, no Museu e na Rua Heróis do Ultramar.
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A ideia de “zona nobre-zona pobre” é um conceito que,
paradoxalmente, cristalizou e foi consagrado pelo poder local democrático.
Depois do vintecincodAbril o poder foi por fim entregue ao povo, que depressa porém o
delegou em sucessivas gerações de políticos venais que, por sua vez, delegaram alegremente
a arquitectura no desenhador-de-construção-civil
e o urbanismo no empreiteiro. E assim
foi sendo imposto um conceito de cidade à
la carte, à vontade do freguês e do mestre d’obras. Uma cidade cada vez
mais desigual, desenhada por ignorantes, ao gosto boçal de patos bravos, com a
conivência venal de imbecis (ainda que eleitos). As ruas e os passeios
estreitaram-se, as habitações acumularam-se na vertical, em busca de cada vez
mais espaço útil, transformando a paisagem urbana num emaranhado informe, caótico
e intransitável de guetos sem identidade onde, em novelos infames, cabos
eléctricos amarinham pelas paredes e automóveis e contentores de lixo pelos
passeios – dificultando o fluir do trânsito e dos peões, a recolha do lixo, a
entrega do correio, a acção dos bombeiros e até a da polícia.
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Agora, no entanto, o poder municipal parece querer
chamar a si, de novo, a gestão do espaço público. O paradoxo é que parece que,
para os seus novos “arranjos urbanísticos”, está a recorrer aos mesmos
gabinetes ignorantes de desenho-de-construção-civil geridos pelos mesmíssimos
patosbravos cujo gosto e sensibilidade exclusivista estão bem vincados nos
critérios dos “arranjos urbanísticos” da envolvente do Forte de Stª Catarina,
na Figueira e do largo da Feira Velha, em Maiorca.
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Do primeiro caso, e da sua inacreditável ostentação de
materiais nobres (o granito natural, o aço inox e o patinável, os candeeiros de
design xpto, etc., etc.), já me pronunciei aqui.
A propósito do arranjo do
Largo da feira velha, também cheguei a manifestar as minhas reservas quando
soube da sua aprovação em Assembleia Municipal. Na altura, em Janeiro último “(...)não
gostei de saber foi que o projecto aprovado (será executado com meios de QREN)
está “fechado” – ou seja, os fregueses de Maiorca poderão, muito
“democraticamente”, opinar
sobre uma intervenção definitiva num dos seus espaços cívicos mais emblemáticos
mas nada podem fazer para influir nos critérios que presidem à sua concepção.
Fiquei assim esclarecido sobre o conceito de poder local que informa a sensibilidade da maioria
absoluta que governa o concelho – uma sensibilidade que revela uma mentalidade que se acha legitimada para impor de
cima soluções concebidas
num gabinete por quem não conhece o local, o uso que lhe dão as gentes, as
necessidades destas ou os seus costumes(...)” .
-Bem dito, bem feito.
Os meus receios confirmaram-se. O projecto aprovado não contempla afinal todo o
Largo, mas apenas o que se situa a norte da antiga EN111. Quanto às obras, uma
visita breve chegou-me para ver que de granito
natural e aço inox ou patinável nem sinal; nem de candeeiros de design. Do que lá pude observar foi que os lancis e os ladrilhos são de betão celular e os candeeiros de lata zincada.
Como também
previ de um projecto executado “por quem não conhece o local, o uso que
lhe dão as gentes, as necessidades destas ou os seus costumes”, também não lobriguei nenhum espaço destinado
à música e à cultura (Maiorca tem uma Filarmónica e organiza anualmente, há uma
porção de tempo, um festival de folclore), nem para o tronco de Natal; tampouco
para o pau de sebo ou outros jogos
populares. Enfim, chegou-me para perceber que o que se pretende do largo
da mais antiga povoação do concelho é uma espécie de logradouro para
estacionamento.
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Estes dois casos são paradigmáticos daquilo que julgo ser
uma opção consciente e deliberadamente assumida pelo poder local: segregar
os seus cidadãos, tratando-os de modo diferenciado; uns como gente-fina; outros, com explícito
desprezo, como simples labregos.
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Bem sei que muitos destes não se importam (porventura a
maior parte deles); é isso aliás que torna tudo tão revoltantemente
repugnante.
A verdade é que não existe emancipação possível para uma
cidadania que aceita acriticamente tudo o que vem de cima, nem que seja um escarro, porque ou “não sabe-não responde” ou porque pensa que “qualquer coisa é melhor que nada”, porque “caladinho é que se vai longe”.
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O Largo da Feira Velha já é um largo mártir; ou
seja, é um palco habitual de atrocidades. Uma delas também a comentei aqui. Na imagem (de ontem) continua a ser “o
retrato alarve, bisonho, grotesco e boçal, mas fiel, da choldra triste e
nefanda que é este país profundo”.
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