Os figueirenses têm com a cultura uma relação distante,
conflituosa, inexplicavelmente (ou talvez não) ressabiada. Preferem aquilo a
que chamam “animação” - o “entretenimento”. São mais dados ao mundanal ruído da
festarola social do que à introspecção necessária ao deleite estético ou à
reflexão informada. Por isso preferem o CAE ao Museu Municipal. E a qualquer
destes o Casino, claro.
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O próprio poder público local aliás, também. A notória menorização
do Museu em detrimento do CAE é visível a olho nu por quem se interesse um
mínimo pelas questões da cultura. Trata-se do que eu chamo a “doutrina Santana Lopes”, ainda em vigor de facto, apesar de os actuais
detentores do poder local assumidamente a detractarem.
E é nisto que consiste o
rotundo fracasso da gestão socialista - sobretudo do seu inefável vereador da
Cultura – que não soube (ou não quis, ou não pôde) impôr uma visão diferenciada
do paradigma santanista.
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Ou seja, continua, de
facto, a aposta no glamour do pimba-supostamente-chic - com as suas pomposas
“esplanadas-lounge” e os seus “indóor-miúsic-féstival”– ou noutras quejandas
mas áutedoór como a subvenção pública
anual a um carnaval de pacóvios ou a abstrusas festas de fim-de-ano com
recordes papalvos de foguetes na mão.
O CAE, que foi um projecto mal enjorcado (tem salas
concebidas para exposição com colunas ao meio, por exemplo) e uma obra mal
executada (são já notórios indícios óbvios de decrepitude), é um “equipamento”
sem produção própria nem património de que cuidar - mas tem um site na internet
- ao contrário do Museu Municipal, depositário de um acervo de indiscutível
valor histórico, artístico e cultural, que interessaria, penso, divulgar
–quanto mais não fosse por razões de prestígio ou auto-estima.
Qualquer bicho-careta contratado para cantarolar no CAE
tem direito a promoção mediática e áuteduóres coloridos mas, por “contingências da crise”, as iniciativas
do Museu para mostrar os tesouros do nosso património nem sequer chegam ao
conhecimento do público por indecorosa inexistência total de divulgação
condigna; nem um cartaz, um folheto, quanto mais a edição de uma monografia.
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Eu tenho, confesso, com o Museu Municipal Santos Rocha
uma relação especial. Foi lá que me foi permitido, no já longínquo ano de 1984,
expor pela primeira vez. Foi lá também que, uns anos mais tarde, realizei a
minha primeira exposição individual. Sou um visitante assíduo das suas
exposições. Conheço-lhe os cantos quase todos. Estou lá representado (por
doação, não por aquisição – não devo favores a políticos). Enfim, sou quase lá
de casa e embora faça mais do que uma vaga ideia da qualidade e diversidade do
seu acervo, valiosíssimo em comparação com o de museus congéneres, ele não
cessa de me espantar.
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Das suas colecções estão patentes actualmente duas
exposições temporárias (até Março, ao que me dizem): uma de pintura portuguesa
dos séculos 19 e 20 e outra, “A preto
& Branco”, de desenhos, da primeira metade do século vinte. Ambas preciosas,
montadas de forma algo ingénua (por ordem alfabética) mas com bom gosto, sem
requintes nem baboseiras.
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Todavia, a que me surpreendeu foi a de desenhos. Trata-se
de uma espantosa colecção de desenhos originais (ilustrações e caricaturas) de
alguns dos melhores artistas portugueses da primeira metade do século vinte,
quando se dedicavam ao humor gráfico: Almada Negreiros, Álvaro Canelas, Alcindo,
Arnaldo Ressano Garcia, Bernardo Marques, Cândido Costa Pinto, Cristiano Cruz,
Diogo de Macedo, Emmérico Nunes, Francisco Valença, Celestino Gomes, Joaquim
Lopes, Jorge Barradas, Júlio dos Reis Pereira, Milly Possoz, Pargana, Paulo
Ferreira, Stuart de Carvalhais, Teixeira Cabral, Joaquim Salgado e Zeco.
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O que me chocou - para além de as ter descoberto por
acaso, apenas porque sou um visitante assíduo - foi o folheto informativo, uma folha
A4 com o mesmo texto em inglês no verso. Quatro vagos e enigmáticos parágrafos,
mencionando diligentemente os nomes do emérito conservador à data das doações e dos
doadores, dois egrégios figueirenses - numa nota de um respeitinho reverente tão atrozmente paroquial e tão tristemente
revelador do quanto um certo espírito da
outra senhora ilumina ainda mentalidades supostamente insuspeitas – e nenhuma
referência a qualquer dos artistas representados, às suas vidas ou obras, nada
de nada - dá que pensar sobre se os actuais responsáveis do Museu, quem os
tutela (ou quem comissariou a
exposição) terão alguma espécie de consciência da importância do legado que lhes
cabe zelar.
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A crise e a contenção de despesas não explicam tudo. Compreendo que o culto do pimba, em
todos os seus matizes - do soft ao hard - como opção cultural estratégica, dissipa muito dos poucos recursos. Mas eu não queria fanfarras nem tiroliros. Ou áuteduóres
coloridos. Nem sequer uma monografia, que diabo. Apenas alguma informação.
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Um museu não é só uma sala de exposições. Pode ser apenas
isso, claro, como se vê. Mas não devia, porque é uma casa de cultura. Devia ser
um templo, difusor de conhecimento.
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Ao
alto, Cristiano
Cruz, 1913 - esboço de cartaz para a 2º
exposição de Humoristas Portugueses.
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