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sexta-feira, 26 de agosto de 2011

O dia vinte e seis de Agosto



INSTRUÇÕES PARA DAR CORDA AO RELÓGIO
Lá bem no fundo está a morte, mas não tenha medo.
Segure o relógio com uma mão, com dois dedos na roda da corda, suavemente faça-a rodar. Um outro tempo começa, perdem as árvores as folhas, os barcos voam, como um leque enche-se o tempo de si mesmo, dele brotam o ar, a brisa da terra, a sombra de uma mulher, o perfume do pão.
Quer mais alguma coisa? Aperte-o ao pulso, deixe-o correr em liberdade, imite-o sôfrego. O medo enferruja as rodas, tudo o que se poderia alcançar e foi esquecido vai corroer as veias do relógio, gangrenando o frio sangue dos seus pequenos rubis. E lá bem no fundo está a morte se não corrermos e chegarmos antes para compreender que já não interessa nada.

Julio Cortázar, Manual de instruções, in Histórias de cronópios e de famas
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Há já alguns anos que neste dia me acontece uma tristeza mansa, acompanhada de uma larvar e estranha (mas cada vez mais aguda) consciência do absurdo e dos limites do tempo.

Por falar nisso, hoje também faria anos Júlio Cortázar, esse melancólico e inconformado praticante do humor livre, genial enunciador de paradoxos e absurdos vários.
Ah, e monsieur de Lavoisier, que estudou o oxigénio, descobriu que a água era uma substância composta (vocês sabem, H2O) e perdeu a cabeça na revolução - não sem antes ser o primeiro a enunciar o princípio da conservação da matéria – o que não chegou a consistir, aliás, um paradoxo; apenas um facto da vida..

Bem vistas as coisas, é terrível ter a consciência lúcida do peso inexorável de que nada se cria, nada se perde, tudo se transforma.
Todavia, como convivo mal com máximas definitivas e (ou) verdades absolutas, nunca me conformo sem luta.

Faço desenhos; pinto quadros; planto árvores; faço humor; escrevo umas merdas. O diabo a quatro..

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segunda-feira, 22 de agosto de 2011

O banqueiro doutor




Eu já fui ministro da fazenda. Para se ser ministro não é preciso saber de finanças; basta conhecer alguém que saiba Fernando Henrique Cardoso


. A pérola (em epígrafe), soltada uma vez pelo ex-presidente do Brasil, corrobora, postumamente e em glória, o telegráfico poema (de um só verso) de Jorge de Sena, Em louvor do Brasil: “tal pai, tal filho”. .


Mas Portugal, como de costume, já vai na frente. E sempre apostado em dar razão ao poeta.
O novo governo da república tem, por exemplo, um ministro da saúde que, como é óbvio, não sabe nada de saúde. O homem sabe, é de finanças.
Paulo Macedo, de sua graça, é filho de um comunista. Nem mais. Mas ele viu a luz. Fez-se banqueiro. E foi tão iluminado que agora sente-se “confortável dentro da área dos partidos do arco da governação”..


A prova que o homem sabe muito de finanças é que mandou os gestores dos hospitais fazerem ainda mais cortes. Como toda a gente sabe que quem faz cortes nos hospitais são os cirurgiões, o resultado óbvio de tal directiva é que estes, naturalmente, irão passar a cortar menos. Ora, como mais vezes menos dá menos (+x-=-), o mais certo é que o SNS ainda venha a dar lucro. Depois privatiza-se, claro. -Porque pensam que nomearam eles um banqueiro ministro da Saúde?

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Outra prova de que o homem sabe paletes de finanças e que para além disso, tem um forte sentido da justiça (herdado do pai, disse ele à Visão), é que ele acha que as remunerações pagas aos altos funcionários do governo “não são as adequadas e põem em perigo a possibilidade de se atrair as melhores pessoas" (as mais competentes, como ele, naturalmente). Em resumo, o homem acha que está a ganhar pouco.

.. Seja como for, agora só temos que fazer figas e esperar que ele conheça mesmo alguém que saiba de Saúde; ou seja, “as melhores pessoas”. Para brincarem aos médicos.

.. Enquanto isso, nós, sei lá, sempre podemos recitar, já não Em louvor do Brasil mas A Portugal, do mesmo Jorge de Sena. Mas em voz alta. Porque é de gritos..


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sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Os quadros bons vendem-se todos




A maior infelicidade para um artista é ter um adversário sem talento Denis Diderot
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Apesar da minha confessada misantropia, gosto de me manter informado sobre os “causos” que vão acontecendo aos meus semelhantes mais próximos.
Por isso quando desço à vila, por tabaco ou por carvão, invariavelmente entro no café. É aí que leio os jornais regionais e me informo das novidades. É claro que, de entre a pilha de exemplares disponíveis sobre o balcão, quase todos são antigos e desactualizados. Mas eu leio tudo (informação desactualizada não é poder, é apenas saber) e não me importo, gosto de acumular conhecimento.
Foi aí que encontrei, num exemplar do diário “As Beiras” de 16 de Julho, uma entrevista com Beja da Silva, um marchand (negociante) de tableaux (mercearias finas), que me deixou varado.

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O que no meu caso é natural - abrir parênteses: (dizem que à simples menção da palavra “marchand”, Picasso vociferava: “voilá l’ennemi!”. Artistas e marchands nunca se entenderam sobre conceitos económicos tão básicos como “preço” e “valor”. Há mesmo uma história, que muitos pretendem verídica, e se terá passado entre Picasso e Rosenberg (o avô de madame Strauss-Khan) que ilustra este facto: certo dia, Picasso, pretendendo vender algumas das suas obras, discute o assunto com o seu marchand. Bastante animado, o marchand perguntou por quanto Picasso venderia uma delas e, ao ouvir a resposta do pintor indagou sobre o seu valor, achando-a acima do preço de mercado. Picasso imediatamente retrucou dizendo que a obra valia o que ele pedia e que “preço” era diferente de “valor”. Foram discutindo a questão por alguns minutos até que, irritado, o marchand replicou que ele não percebia nada de negócios e que lhe explicaria como funcionava. Então, puxou uma nota de um dólar do bolso, mostrou-a ao pintor e disse: — Está a ver aqui, mestre!? Está escrito um dólar! Isso significa que esta nota vale um dólar! Picasso pegou na nota, autografou-a e em seguida perguntou ao marchand: — E agora, quanto vale?). Fechar parênteses.

Segundo Jot’Alves, o entrevistador, Beja da Silva é o feliz proprietário de uma galeria de arte que é “um ícone no panorama das artes plásticas da região Centro”. Além disso, ainda segundo o entrevistador (ele próprio um ícone de um certo jornalismo, digamos, dedutivo), Beja da Silva é “galerista a tempo inteiro há mais de vinte anos” e faz isso desde pequenino quando, aos doze anos, descobriu que não tinha talento.
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-Mas não foi isto que me espantou. Acho até natural que um comerciante possa fazer da arte um modo de vida “a tempo inteiro”; sobretudo numa região onde os artistas “a tempo inteiro” se podem contar pelos dedos de uma mão e onde não existem hábitos esclarecidos de fruição cultural ou sequer crítica de arte. Bate certo. Confirma o real aggiornamento da Figueira em relação ao país: em Portugal, essa pátria de desempregados que aniquilou actividades realmente produtivas como a agricultura, as maiores fortunas pertencem - como toda a gente sabe - a grossistas de mercearia.
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-O que provocou a minha perplexidade foi o que Beja disse a seguir (isto segundo o dedutivo entrevistador): que na Figueira “o problema está na classe média…” e tal e que “não há muitas empresas a investir em arte”. Mas que, fora disso, o mercado (da arte) continua, como se diz na têvê, em alta, ou com sentimento positivo, ou lá o que é; a conjuntura não afectou nem a oferta, nem a procura, nem o preço, nem o valor. Ou seja, “Os quadros bons vendem-se todos. Há cada vez mais pessoas a investir em arte, independentemente de gostarem ou não da obra. É uma forma de investimento.
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Decididamente, tal como a Picasso, há na economia demasiadas nuances que me escapam. E, no meu caso, até na arte; o que, helas, provoca (juntamente com outros problemas que tenho com o mercado, como já expliquei aqui) uma continuada revisão, em baixa, da minha cotação.
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Mas para além disso, e digam lá se isto não é realmente extraordinário, apesar de no país ninguém ter dado por nada, na Figueira já começou a retoma. Olé.

E pela arte. Beja da Silva é o seu profeta.

Vai já para o meu Álbum Figueirense. Aqui ao lado, na prateleira, junto dos outros cromos.
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terça-feira, 16 de agosto de 2011

O "dejá vu" bizarro



Vejam bem quem a direita escolheu para roubar aos pobres.
Também tem um discurso que “torna as almas pequenas” e é o primo mais lúgubre de Francisco Louçã. Mas parece que saiu de um filme da família Adams.
Só que é a sério.
Ainda dizem que a direita não tem sentido de humor.
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sábado, 13 de agosto de 2011

estória exemplar do filhodaputismo bi-polar




Se a minha avó tivesse rodinhas era um carrinho de bombeiros”, disse José Miguel Júdice. Bem, não disse mas podia ter dito. O que ele realmente disse (há uns anos e, a brincar) foi: ”se em 1980 o PS fosse como hoje, Sá Carneiro era PS” - o que, na prática, quer dizer que a avozinha do senhor é realmente um tinóní. E o senhor um engraxa-o-cágado (o cágado era Sócrates), ou seja, um merdas.
Mas isso foi há uns anos. Agora, o que ele diz a sério é que acreditou no que os amigos lhe diziam - mal - do novo líder, Passos Coelho. Hoje, nenhuma dessas realidades se mantém. É isso, o cágado, agora chama-se Coelho. E não espantará ninguém por isso que Júdice um destes dias afiance que se fosse hoje Sá Carneiro seria PSD. O que seria natural, pois mesmo em vida o homem passava o tempo a entrar e a sair do partido.

. Agora, mesmo a sério: José Miguel Júdice é um advogado, dos mais influentes do país, dizem (foi licenciado e lente em Coimbra meu deus), sócio de uma empresa que tem uma “visão próxima do cliente” e um empresário esclarecido (presumo que com uma visão próxima do advogado) que deve o seu sucesso a um sem número de qualidades que são o paradigma desse determinismo nacional do qual já vos falei aqui. Duas dessas qualidades são as piéces de resistance (enfim, o je ne sais quoi indispensável) do enriquecimento pessoal e do sucesso de empreendimentos de toda a ordem neste país: cara-de-pau e espinha flexível, para engraxar o cágado que tem o poder no momento. Uns têm, outros não. Ele tem. E sublima-as.

. Por isso mesmo e apesar da sua forte crença nas virtudes do mercado, Júdice deve muito do seu sucesso como empresário à sua prestação como advogado. Do Estado. Não há nada que ele não faça pelo Estado: dá-lhe consultas, dá-lhe pareceres, dá-lhe conselhos, enfim gosta. Mas do que gosta mais é de parcerias com organismos públicos. Câmaras municipais, e assim. Como a sociedade que constituiu com a da Figueira da Foz (com o objectivo da recuperação do Paço de Maiorca e sua posterior utilização como hotel de charme).
O Paço de Maiorca albergava então um valioso espólio de mobiliário e cerâmica (avaliado em 600 mil euros), oferecido ao município por um particular, na condição de ser exposto no referido edifício. A este respeito, António Tavares, actual vereador da Câmara da Figueira, conta, a pags 75/76 do seu imperdível opúsculo “Figueira da Foz – erros do passado, soluções para o futuro”, uma estória exemplar: “(…) veja-se que ainda o edifício não estava em obras, mal a sociedade com a Quinta das Lágrimas estava constituída e já algumas peças tinham “voado” nessa direcção”.

. Recorde-se que embora Júdice seja o feliz proprietário da Quinta das Lágrimas, em Coimbra, a estória da parceria que assinou com o município figueirense (tão bem explicada aqui) e o episódio contado por Tavares são tão exemplares, que podem bem ilustrar um compêndio sobre o enriquecimento pessoal e a prosperidade de muito do filhodaputismo nacional mais freneticamente adepto da economia de mercado.

Ah, José Miguel Júdice é ainda proprietário da “marca” Inês de Castro e escreveu um livro chamado “O meu Sá Carneiro”, pelo que se pode deduzir que já terá também privatizado o malogrado político nortenho (vocês sabem, aquele baixinho com um grande nariz), o que aliás, dadas as convicções económicas liberais de ambos, acho que faz sentido. Em todo o caso, si non è vero, è ben trovato.
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quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Fucking Ada



Este blogue não “apoia” nem se regozija por aí além com os acontecimentos de Londres.

Limita-se a, “atento ao rumor do mundo”, constatar um facto: os vândalos estão no meio de nós.
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A barbárie a que assistimos em directo na televisão não passa de uma vertigem do consumo. Os excluídos da sociedade do consumo e do espectáculo também querem consumir. E aparecer na televisão.
Os insurrectos que vemos no pequeno ecran são o fruto do que o sistema (o modelo social da sra Thatcher, aperfeiçoado pla 3ª via do sr. Blair e agora plo sr. Cameron) reservou para eles. Não tiveram educação (não tinham dinheiro para as propinas) nem saúde (não tinham dinheiro para o seguro) nem trabalho (por isso não tinham dinheiro para a educação e a saúde e a cultura, and so on).
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Esses bárbaros não têm pois educação, nem maneiras, nem causas, nem ocupação, nem ideologia, nem referências, nem líderes, nem a mínima ideia do que estão ali a fazer. Mas têm uma ideia (mais do vaga) do que o sistema lhes pode oferecer; a publicidade que vêem na televisão (esta é free) encarregou-se, doutrinando-os, de os elucidar sobre isso. E eles também querem aparecer na televisão. E como the show must go on, o espectáculo é o seguinte:
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-os grunhos analfabetos que vemos embuçados, "às compras", num frenesim alarve de consumo pelo “antigo bairro de Marx” (tiens, não foi este que disse que o capitalismo haveria de soçobrar nas suas próprias contradições?) não têm nada a perder. Estão se cagando.
Essa é que é essa.
Es-tão se ca-gan-do. Fucking Ada, my dear.

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sábado, 6 de agosto de 2011

O fungagá da bicharada





Os conservadores são pessimistas quanto ao futuro 
e optimistas quanto ao passado
Lewis Mumford

.Muito se tem dito sobre o carácter supostamente liberal, ou neo-liberal, do actual governo de Portugal. Bullshit.
O facto, não despiciendo, de cada vez mais os dixotes amargos ou mordazes de Eça, Guerra Junqueiro ou Bordalo Pinheiro (sobre os portugueses e o estado da nação) se tornarem inquietantemente actuais confirma o regresso em força do país ao século dezanove. E corrobora, helas, o carácter eminentemente conservador do governo de Pedro Passos Coelho, esse inenarrável leitor exclusivo da “Fenomenologia do Ser, “de Sartre”.
Até uma cançoneta de José Barata Moura, esquecida nos anos setenta, ganha uma nova e surpreendente actualidade com a delirante política assistencial do governo da firma Coelho & Portas SA.
Os conservadores rejubilam, caridosos. O país caminha enfim, inexoravelmente, de volta ao seu (deles) passado radioso. Cantando e rindo.
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Em todo o caso, não há nada como um governo iluminado (pela direita) para nos fazer revisitar os clássicos..

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terça-feira, 2 de agosto de 2011

Custódio Cruz




A Figueira da Foz não é uma pátria amável para as virtudes cívicas (já aqui sugeri como a Figueira pode ser uma curiosa paráfrase do país).
O caldo de cultura em que marinam os hábitos sociais dos figueirinhas é uma estranha emulsão, composta em partes iguais por ingredientes provenientes do terroir local; tais como a inveja (da mais ignóbil); a cobardia (da mais soez); a mediocridade (da mais envaidecida); a ignorância (da mais impávida); o lambecusismo (uma variedade local da subserviência, mas mais convicta); a pura maldade e requintes de estupidez.
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O figueirinhas é um gebo. Tem problemas na coluna vertebral. É incapaz de, às claras, desobedecer a uma ordem, discutir uma directiva, discordar de uma opinião, ter uma opinião, discutir uma ideia.
O figueirinhas considera, aliás, que a crítica “tem sempre a ver com o pior: a inveja, a cobiça, o ressentimento”.


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O figueirinhas é incapaz de exprimir um protesto, uma dúvida, uma reclamação, uma indignação, um sobressalto cívico, nada.
Na sombra sim. Disso e de muito mais. À sombra do anonimato, o figueirinhas é capaz de tudo. De mijar num lavatório, de cuspir na sopa que serve, de denunciar iniquidades, de exigir retaliações, de destruir reputações, de desprestigiar chefias, até de derrubar poderes instituídos. Na Figueira da Foz, o poder (qualquer poder) sabe-o e teme-o mais do que à própria oposição, ao comunismo ou à anarquia..


O figueirinhas e o poder são, aliás farinha do mesmo saco: com esta coisa da democracia um elege o outro e este retribói: - cultivando com desvelo - a inveja, a cobardia, a mediocridade, a ignorância, a subserviência, a maldade e a estupidez, enfim, todos os ingredientes do caldo infecto que alimenta esta cidadania..


Todavia, se bactérias num meio é cultura, é natural que alguns figueirenses não se sintam bem em tal meio. Os de mais talento, coragem, e possibilidades, põem-se a milhas. Uns andam sempre em viagem. Outros, optam simplesmente por ir morrer longe. Há deles contudo, que se instalam noutros lugares e regressam de vez em quando. Outros ficam amargos, tornam-se humoristas e nunca mais voltam. Outros ainda, como eu, tornam-se refractários à vida social (o conhecimento profundo do associativismo local é uma das razões de uma melancólica e assumida misantropia).

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Por isso mesmo não deixo nunca de me espantar que tal meio cultural, tão propício à prosperidade das mais diversas taras colectivas como hostil a qualquer tipo de virtude cívica produza, ainda assim, exemplos de cidadania como Manuel Fernandes Tomaz. Ou Cristina Torres..


Ou como Custódio Cruz.
O herói (ou mártir) do mercado - cuja voz é crapulosamente distorcida nos jornais e o carácter é impunemente escarnecido e assassinado nos blogues por indómitos figueirinhas anónimos - é alguém que sente o que pensa e di-lo em voz alta, afirmativo, sem pruridos de boas maneiras.
Este é um estranho e misterioso paradoxo.
Um verdadeiro milagre. Vai já direitinho para o meu Álbum Figueirense..


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