Juro que não quis ofender o senhor Lavaccara, nem da primeira nem da segunda vez, como andam a dizer na aldeia.
O senhor Lavaccara pôs-se a falar-me de um seu porco e queria convencer-me de que era um animal inteligente.
Eu então perguntei-lhe:
- Desculpe, o porco é magro?
E eis que o senhor Lavaccara olha para mim como se a pergunta tivesse a intenção de ofender, não o animal de que era proprietário, mas ele próprio.
Respondeu-me:
- Magro? Pesa mais de um quintal!
E eu então disse-lhe:
- Desculpe, julga que é inteligente?
Estávamos a falar do porco. Mas o senhor Lavaccara, com toda aquela sua rósea fartura de carnes tremulantes, julgou que eu depois de ofender o porco o quisesse ofender agora a ele, como se tivesse dito que em geral a gordura exclui a inteligência. Mas, repito, era do porco que estávamos a falar. Não tinha pois o senhor Lavaccara que fazer uma car tão feia, nem que perguntar-me:
- Então eu, na sua opinião?...
Apressei-me a responder-lhe:
- Mas que é que o senhor tem que ver com isto, caro senhor Lavaccara? O senhor é porventura um porco? Desculpe. Quando o senhor come com esse belo apetite que Deus lhe conserve até ao fim da vida, para quem come? Come para si, não engorda para os outros. O porco pelo contrário julga que come para ele e está mas é a engordar para os outros.
Não se riu. Ficou ali plantado, duro, na minha frente, mais feio ainda do que já era. E eu então, para o demover, acrescentei com precaução:
- Suponhamos, suponhamos, caro senhor Lavaccara, que o senhor, com a sua bela inteligência, era um porco. Desculpe, o senhor comia? Eu não. Quando visse trazerem-me a comida grunhia horrorizado: “Livra! Muito obrigado meus senhores, comam-me magro!” Quando um porco é gordo significa que ainda não compreendeu isto; e se não compreendeu isto, pode porventura ser inteligente? Por isso lhe perguntei se o seu era magro. Respondeu-me que pesa mais de um quintal; desculpe, senhor Lavaccara, será um belo porco, não digo que não, mas não é com certeza um porco inteligente.
Pareceu-me que não podia ter dado ao senhor Lavaccara uma explicação mais clara do que esta. Mas não valeu de nada. Ou melhor, é garantido que piorei as coisas; dei-me conta disso conforme ia falando. Quanto mais eu me esforçava por tornar clara a explicação mais o senhor Lavaccara fechava o rosto, a mastigar:
- Pois...pois...
Porque decerto lhe pareceu que pondo eu o animal a raciocinar como um homem, ou melhor, pretendendo eu que aquele seu animal raciocinasse como um homem,não queria falar do animal, mas dele.
E estamos nisto. Sei que o senhor Lavaccara anda de um lado para o outro a repetir as minhas palavras para fazer ressaltar a fatuidade delas aos olhos de todos, para que todos lhe digam que aquelas minhas palavras não faziam sentido referidas a um animal, o qual julga também comer para si próprio e não pode saber que os outros o estão a engordar para eles; um porco nasce porco, quanto a isso nada pode fazer. É pois evidente que tem que comer como um porco, e dizer que o não deveria fazer, mas sim recusar a comida para que o comam magro, é um disparate, porque um tal objectivo não pode nunca passar pela cabeça de um porco.
Estamos perfeitamente de acordo. Mas se foi ele, santo Deus, que me veio com aquela cantiga, em todos os tons, ele, o senhor Lavaccara, de que aquele animal só lhe faltava falar! E eu quis justamente demonstrar-lhe que não podia possuir, nem possuía, por sorte para ele, essa famosa inteligência humana; porque um homem pode permitir-se o luxo de comer como um porco, sabendo que depois de estar gordo não será degolado; mas um porco não, e não. Por Deus, parece-me tão claro!
Ofender?, mas ofender o quê?; eu quis pelo contrário defender o senhor Lavaccara de si próprio, conservar intacto o meu respeito por ele, e livrá-lo até da sombra do remorso de ter vendido aquele seu animal para ser degolado na festa do Senhor Jesus das Naus. Mas ainda me zango mesmo a sério e digo ao senhor Lavaccara que ou o porco dele era um porco vulgar e não possuía aquela famosa inteligência humana que anda a apregoar, ou que o verdadeiro porco é ele, o senhor Lavaccara; então sim, que o ofendo.
Questão de lógica, meus senhores! E depois entra aqui na dança a dignidade humana que me interessa salvar a todo o custo, e não a poderei salvar senão com a condição de convencer o senhor Lavaccara e todos aqueles que lhe dão razão de que os porcos gordos não podem ser inteligentes, porque se esses porcos falam uns com os outros, como o senhor Lavaccara pretende e anda a propalar, não seriam eles mas a dignidade humana o que andam a degolar nessa festa do Senhor Jesus das Naus. (…)
O Senhor Jesus das Naus, in Contos Escolhidos (tradução de Carmen Gonzalez) Editorial Verbo
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