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quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Em jeito de proclamação (especial)

Pedro Santana Lopes admite querer candidatar-se à presidência da república, avançou o canal NOW. O canal que garante informação privilegiada adiantou ainda que “o autarca da Figueira da Foz considera que tem a experiência necessária”. Diz que só lhe faltam sondagens favoráveis.

Então é assim. Como ele já tem tudo o que é preciso, e só está mesmo à espera da vaga de fundo, eu permiti-me contribuir graciosa e desinteressadamente para a superação do seu piqueno handicap. Tomei a liberdade de redigir uma espécie de manifesto, ou proclamação que, dirigida especialmente a indecisos, confusos, recalcitrantes e ao povo em geral, talvez ajude a formar a hola!


Afixe-se.

Santana a presidente

manifesto panegírico

em forma de pequeno ensaio

sobre uma grande figura

com notas de rodapé


Ele não para e nunca dececiona os seus adetos indefetíveis; sempre recetivos a qualquer dos seus atos, quaisquer que sejam as aceções destes ou o aspeto que aparentem. Sob esta ótica, ele é um político fraturante, de fação, de rutura, de reação, de fato. Um olfato venatório, um tato circunspeto, um caráter percetivo, um instinto matador e um génio disrutivo temperado de eletricidade estática ininterruta permitem-lhe projetar epifenómenos de um afeto entusiasmado, anticético e abstrato, num trajeto muito adjetivado arquitetado em perfuntórias perspetivas que adotam sempre novas direções.

O parágrafo que acabastes de ler foi laboriosamente redigido para vosso exclusivo prazer e deleite. A pura verdade, como o evangelho, no mais puro português de lei. Dir-se-ia du Padre Vieira, mas sem espinhas; depurado e palatável: com menos consoantes mudas e mais vogais surdas. Reconheço que o logrei concluir, deste modo ortograficamente correto, com muita dificuldade.

Mas felizmente existe agora mais do que apenas uma geração que já se exprime assim com toda a naturalidade. Toda uma basta gente instruída e alfabetizada deste modo admirável.

E isto deve-se a um português ímpar1. Sim, .-porque são poucos, cada vez menos ou nenhuns, os que, através de uma acção benemérita e desinteressada logram influir assim, de modo estruturante e perdurável, na formação e edificação de gerações futuras.

Trata-se de alguém cujo contributo voluntarioso e pertinaz foi fundamental para tornar exequível este aggiornamento, este desabrochar2 da língua, este milagre do português redivivo, enfim, este épanouissement da escrita de expressão lusitana.

Mas deixemos-nos de galicismos, itálicos e rodriguinhos: foi este bravo que, confessadamente, tomou por missão patriótica o desígnio de Cavaco de fazer aprovar o acordo ortográfico de 1990.

Ele integrava então, como secretário d'estado da cultura, o governo que na mesma época também eucaliptizou o país (Cavaco, considerava - certamente bem informado, como sempre - que o eucalipto seria o “nosso” petróleo verde).

Muitos anos depois, o país não se tornou exactamente um petro-estado mas a verdade é que arde sempre mais um pouco a cada ano - o que prova que o nosso petróleo, se não é tão carburante, é pelo menos tão inflamável como o dos outros. E é ainda mais verdade que a nossa língua escrita, e até a falada, não só nunca mais foi a mesma como nunca há-de voltar a ser simplesmente uma língua como as outras.

Trata-se, já adivinhastes, do inefável, imarcescível, inimitável, inconfundível, inolvidável, imprescindível, inimputável, inamovível, imperturbável, irredutível, incontornável, e insubstituível...

Pedro Santana Lopes.

Mas o desempenho do actual e recidivo presidente da Câmara Municipal da Figueira da Foz não se ficou apenas pelo brilharete na ortografia da língua; o que, num país reconhecido, já seria suficiente para lhe ser concedida a honra vitalícia de empunhar o estoque de Condestável ou, no mínimo, de conselheiro de estado. Somos uma república ingrata, essa é que é essa.

Santana, que recentemente confidenciou a um canal de televisão que se sente com qualidades para o desempenho do cargo de presidente da república de Portugal, já prestou muitos outros, bastos e relevantes, serviços à pátria, desempenhando sempre as mais variadas presidências – sempre eleito, por convite ou nomeação: a do Sporting; a da Santa Casa da Misericórdia; a do município de Lisboa, a de um partido político, por si mesmo criado para o efeito e ao qual se referia sempre no feminino; até a do mesmíssimo Governo de Portugal. Sempre com o mesmo aprumo e sainete3, amplamente reconhecidos, e igual impacto estruturantemente decisivo e perdurável no devir de todas as felizes instituições contempladas.

Ele é um homem nascido para mandar, para decidir, para influir, para dirigir. Porque não para presidir à república portuguesa? Sim, porque se a república é ingrata, o povo, esse, é muito agradecido e penhorado. O coração do povo é como um diamante dentro de um cofre-forte e Santana é um desses, poucos, predestinados (como o Cavaco e o Marcelo) que lhe conhecem o segredo. Eu conto-vos como ele abriu o cofre do povo da Figueira e se apoderou do coração daquela terra.

Em 1997, a Figueira vivia amancebada há mais de quinze anos com um velho dinossauro4 xelentíssimo e sucialista, numa relação tóxica que arrefecia. A Figueira é como a loura das telenovelas; ciumenta como uma leoa mas volúvel como uma borboleta: só tá bem onde não tá, só quer o que não tem, sempre à espera do príncipe encantado que, segundo um psicólogo social local5, há-de vir um dia em manhã de nevoeiro. Quando Santana chegou, estava nevoeiro e não se via nada. Bom, não era nevoeiro, era fumo; estava a Naval a arder6, mas era de manhã e não se via nada. Quando ela finalmente o lobrigou, ele era o príncipe encantado que sempre desejara, jovem e garboso e bonito como o galã cafajeste das novelas que mata cabras só com o olhar. E assim foi. Mal ele lhe pôs a vista em cima, foi de caixão à cova; fulminante: paixão recíproca e amor, fatal. Foi o início de uma chanfana intensa, que dura até hoje, cheia de peripécias e infidelidades. Uma vez ele chegou mesmo a trocá-la por outra (outra câmara municipal7) deixando-a para trás a ver navios e com um montão assim de dívidas para pagar8. Mas ela perdoa-lhe tudo e acolhe-o sempre de volta, com os braços quentes de carinho, no seu leito sempre ardente de paixão. Mas vai-e-volta ele diz que vai. E ela então diz-lhe Não venhas tarde, meu torresmo. E ele vem sempre mais tarde, porque não sabe fugir de si mesmo.


Notas de rodapé:

1--ímpar quer dizer raro, ou ainda mais, único. 

2 – desabrochar, neste contexto específico, quer dizer tirar da boca. 

3 - qualidade agradável ou que causa prazer = GOSTO, GRAÇA, PIADA. 

4 – Manuel Alfredo Aguiar de Carvalho, presidente da Câmara Municipal da Figueira da Foz entre 1982 e 1997. 

5 – António Tavares, professor no Liceu, vereador eleito e escritor premiado. 

6 – Aconteceu mesmo. No dia 4 de julho de 1997. 

7 – a de Lisboa, essa galdéria. 

8 – facto que ele finalmente assumiu mas reconhece como “despesas de investimento”

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