.

sábado, 3 de fevereiro de 2024

O “património” dos figueirinhas ou os ratos do palácio


 

.

Os figueirinhas, e os pacóvios em geral, têm com o património público a mesma relação que o poeta franciú Baudelaire dizia que os merceeiros têm com a honestidade. Trata-se de algo que lhes interessa imenso – mas só desde que seja possível abifar bastos dividendos. O senso-comum dos pacóvios, e dos merceeiros, não compreende a importância do conhecimento do passado para o entendimento de seja o que for; nem sequer a substância do conceito de entendimento. A História não tem, para eles, qualquer valor que lhes interesse por aí além. Aliás, como a Cultura. E a honestidade, claro. Excepto, como é óbvio, se o objecto, o local, o edifício, o tesouro gastronómico, a tradição folclórica, etc., tiver real (se é que me entendem) interesse turístico.

Vem isto a propósito da alardeada alegria do bom-povo que foi em esfuziante romaria automóvel à inauguração das obras de restauro do Convento de Seiça. Segundo o inacreditável periódico português New in Town (a imprensa portuguesa também está cada vez mais sei lá, fagueira e sofisticada) o Mosteiro “está como novo” - que é exactamente como se espera que esteja um mosteiro beneditino do século XIII e como o bom-povo e os merceeiros gostam. Só faltam mesmo as “acessibilidades” (os projectistas não as previram, ou os fundos europeus não bastaram) mas virão certamente, bem como um parque de estacionamento, privado claro, a toda a volta do complexo.

Todos estão muito agradecidos aos políticos que tornaram possível a inauguração do nóvel “equipamento” para o qual, aliás, já foi anunciada para breve muita “animação” e toda a sorte de “eventos” (os pacóvios e os merceeiros adoram “eventos” e “animação” e tal). Os políticos também estão todos muito contentes e orgulhosos, limparam muito bem as mãos à parede, elogiando-se imenso uns aos outros pla obra-feita e, como não podem nunca parar de mentir (senão espantam a caça) também elogiaram o “povo”, “que sempre lutou pelo seu “património”. Este não se descoseu (o momento era solene, à frente pontificava o suaxelência o presidente da república em pessoa, Santana ao centro e, em fundo, a filarmónica do Alqueidão) e riu com ainda mais dentes – para não estragar a festa nem destoar na foto, para a posteridade, em que os políticos e os merceeiros se ficaram a rir com os dentes todos.

A verdade é que - salvo pouquíssimas pessoas, facilmente identificáveis - o “povo” nunca lutou porra nenhuma pelo “seu” património. A não ser que “lutar pelo património” seja assistir a tudo em modo sentadinho e caladinho, pose alarve e atitude indiferente ou resmungando em voz passiva à usura do tempo e do abandono, ao saque, à rapina, à pilhagem sistemática de tudo o que fosse transportável (azulejos, pedras talhadas, colunas, pias, pequenas esculturas) e à destruição também metódica e voluntariosa de tudo o resto.

Ora se os merceeiros e os pacóvios dedicam o mesmo desprezo despeitado e interesseiro ao património público, também não é mentira que votam ambos um igual respeitinho, atávico, quase religioso, à propriedade privada. A prova disso mesmo é que nunca - jamais – a integridade do convento de Seiça foi beliscada enquanto pertenceu, primeiro a uma ordem religiosa e depois até ao “ateu confesso” que fez dele um próspero descasque de arroz e até uma fundição. Só depois de abandonado é que o convento se converteu no pardieiro que todos conhecemos.

Eu moro em Maiorca onde existe um palácio do século XVII. Uma vasta propriedade, da baixa nobreza rural, que chegou incólume ao final do século XX, sempre não mãos da mesma família possidente. Sobreviveu, sem um beliscãozinho, a todo o século XVIII, às guerras liberais do  século XIX, à revolução de 1910, que implantou a República, a todo o século XX e ao pequeno sobressalto revolucionário do 25 dAbril. Só se transformou no pardieiro que é hoje depois de adquirida pela Câmara Municipal, num dos derradeiros anos do século XX. De início ficou logo à mercê do saque e da pilhagem permitidos ou “autorizados” pela gestão desmiolada da nova tutela; depois foi entregue à “usura do tempo” que são os trâmites dos tribunais; e finalmente ao atentado anónimo, premeditado ou fortuito, mas pertinaz.

As fotos que ilustram esta posta ilustram, de modo feérico e muito expressionista, isso mesmo, um desprezo ressabiado pelo que é público. Ou então uma curiosa maneira, muito figueirinhas, de “o povo” lutar plo seu património.

São da minha rua, a antiga EN111, no muro norte da propriedade; a primeira foi um acidente há uma semanas; a segunda, mais à frente, da porta do cavalo com o seu belo brazão, foi esta semana. Ainda mais à frente existe um buraco, onde o muro faz a curva que dá acesso à vila, quase ao nível do chão, resultado decerto de mais um infeliz mas igualmente pertinaz acidente rodoviário, onde todos os dias um freguês muito caritativo vai depositar uma bandeja com despojos para os animais. À noite, os ratos do palácio devem ser aos milhares, à porta do cavalo, mui agradecidos - como o povo que se juntava no recinto do convento de Seiça, em dia de, religiosamente, pagar as rendas do convento e a côngrua, para sustento dos frades.

.


1 comentário:

cid simoes disse...

Dói-me visitar este país a esboroar-se