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quarta-feira, 4 de maio de 2022

O português-novo


 

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Sempre que sai do seu palácio para ir pagar as contas ao multibanco, Marcelo é logo cercado por uma bateria de câmaras e um enxame de jovens repórteres estagiárias à cata ansiosa de um título, de uma cacha, de uma abertura de telejornal. Marcelo sente logo uma vontade imponderável de comentar casos, de ponderar hipóteses, de explicar factos enfim, de dizer coisas. É como lançar milho a galinhas. Causa sempre imensa excitação. Desta vez, lançou: ah e tal, nós os portugueses somos todos ucranianos. Mais tarde, sempre entre risinhos cúmplices e cacarejos velhacos, corrigiu: bem, somos quase todos.

O que não deixa de ser verdade. Os portugueses, por exemplo, também são quase todos do Benfica; ou do Sporting. E também votam quase todos no PS; ou no PSD. Quase todos jogam na raspadinha; ou no Euromilhões (têm quase todos muita fé em que o azar dos outros há de ser a sua sorte). Quase todos acreditam em milagres. Vão quase todos a Fátima a-pé; e ao café de-carrinho. E quase todos tomam calcitrin (a verdade é que, junto do placebo, à cautela, quase todos eles também metem para dentro os mais potentes e temíveis analgésicos e anti-inflamatórios).

Mas depois há os outros. Os poucos que faltam aos quase todos são invariavelmente vistos por estes com incompreensão, senão mesmo com perplexidade: os que não são ucranianos, nem russos; os que são do Belenenses, ou da Académica; os que nunca votaram no PS nem no PSD nem acreditam em milagres e não iriam a Fátima nem de limusina; os que nunca aceitariam disputar um jogo cujo desfecho não dependesse do seu talento; os que desconfiam dos sortilégios da farmo-química - como eu, não desfazendo – que ainda lidam com a dor à antiga portuguesa: rogando pragas abomináveis, recitando inauditos chorrilhos de palavrões e proferindo mui solenes ladainhas de obscenidades – o que não cura nem consola, mas desopila. Ah, e finalmente, os portugueses-novos. Ou novos-portugueses.

E quem são estes novos portugueses? - perguntais vós. Pois, ou são ricos de todo o mundo que adquiriram a nossa magnífica nacionalidade, o seu visto Gold, a troco de um investimento financeiro avultado ou criação de emprego (em português corrente, compraram-na; mais ou menos como se compra um ingresso para o circo) ou então são cidadãos das mais diversas nacionalidades, também abastados, mas de ascendência sefardita comprovada, que puderam aceder ao usufruto do nosso belo passaporte graças às alterações à Lei da Nacionalidade redigidas por um tal de Francisco de Almeida Garrett (dirigente da CIP - Comunidade Israelita do Porto) e defendidas no parlamento por uma tia sua de nome Maria de Belém Roseira. Estas alterações seriam uma espécie de reparação histórica pela expulsão de Portugal dos milhares de sefarditas que no século XVI recusaram a proposta do nosso venturoso rei Manuel de se tornarem cristãos-novos

As alterações da tia Maria de Belém à Lei da Nacionalidade entraram em vigor em 2015 e desde então até ao final de 2021, a CIP e a Comunidade Israelita de Lisboa certificaram 86 500 pedidos de nacionalidade. Ou seja, 86 500 novos-portugueses, ou portugueses-novos, com denominação de origem comprovada (doc) pelas comunidades israelitas portuguesas (isto é, são todos de pura cepa lusitana, descendentes comprovados dos sefarditas expulsos no século XVI).

Entre eles consta Roman Abramovich, por exemplo, que se tornou cidadão português em Abril de 2021. Roman é um bilionário que é dono do Chelsea Futebol Clube e de uma frota pessoal de barquinhos de lazer, entre outras muitas e variadas coisas. Roman, actualmente o português mais rico do mundo, deve a sua colossal fortuna ao facto, confessado, de ter trocado favores políticos e proteções honorárias pelo controle de uma grande quota de activos de petróleo e de alumínio, no processo de privatização do Estado Soviético.

Roman também não é ucraniano. É um português-novo, sefardita de pura e velha cepa lusitana, que por acaso também é russo. Porém, certamente por causa das moscas, também usa passaporte de Israel e da Lituânia.

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