.

terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Evasão, descoberta e hamparte


.
Quando os dias se tornam insuportáveis e tudo o que os envolve demasiado deprimente, resta-me sempre a evasão. Por estes dias (noites) tenho andado por outros tempos pela serra d’Arga, pla mão de Aquilino, acompanhando as grandezas e misérias da casa grande de Romarigães. A narrativa dos tormentos eróticos de D. Telmo no assalto à sua cunhada Dionísia é do melhor sexo em português, e do melhor português já agora (bom de lei), que alguma vez li. O tesão, o grande tesão, vivo, brutal e imemorial - descrito em palavras, todas portuguesas - a rebentar de testosterona e de humor, sem eufemismos nem vulgaridades.
.
Mas não me evado nem despaíso, apenas pla literatura. Agora descobri o Youtube. É verdade. Não o youtube das palermices virais, claro. Descobri que para além disso, mais fundo, numa espécie de nicho, é uma plataforma óptima para imensa gente cheia de muito talento. Gente de todo o mundo. 
São os makers, gente que faz coisas, que mostra como o faz e até se mostra a fazê-las, partilhando com o mundo os seus conhecimentos. São artistas e artesãos das mais variadas especialidades: carpinteiros, gravadores, escultores, impressores, soldadores, cuteleiros, serralheiros, jardineiros, construtores de instrumentos, etc. Gente como o norte-americano Mike Siemsen. Aqui, o velho mestre carpinteiro explica como executa excelsamente todos os trabalhos de marcenaria numa bancada sem prensa. Ou como o também norte-americano Frank Howarth, um artista sofisticado, que construiu para si próprio, ao lado da sua casa, no lugar de uma velha piscina, um atelier de carpintaria modernamente equipado onde se deleita fazendo coisas magníficas, como hobbie. Ou o australiano Neil Paskin, fotógrafo-carpinteiro-serralheiro-desenhador faz-tudo. Ou o francês Olivier Verdier, que construiu o seu atelier de marcenaria num velho celeiro algures no sul de França e tem como ferramenta fetiche uma maceta redonda de cantoneiro português. Ou o divertido canadiano (dos que comem ervilhas) Alain Vaillancourt, l ’gosseux d’bois. Ou o maker/artist alemão Hassan abu-izmero, que faz todo o tipo de things engenhosas. Ou Uri Tuchman, também alemão, que grava metais, pinta óleos, talha madeira e inventa as próprias ferramentas com que cria complexos mecanismos para autómatos bizarros. Ou o engenhoso turco Cemal Açar, outro faz-tudo num espaço reduzidíssimo. Ou o talentoso uruguaio Elias Maximiliano que, num espaço despojado e num silêncio quase monacal, faz carpintaria usando as mãos como ferramenta principal.
.
Mas também há outros. Que além de fazerem coisas, falam sobre elas e sobre o mundo. Têm opinião. É o caso do pintor e meticuloso e exaustivo crítico de arte mexicano Francisco Soriano. Ou do brasileiro Eduardo Bueno, histriónico contador de estórias e divulgador de História que, em cada filme de poucos minutos, conta um episodio da história do Brasil, sempre repleto de pormenores pícaros ou picantes. Neste, por exemplo, conta como foi projectada a capital do país; não a actual Brasília, mas a primeira, Salvador (plos tugas). Vejam, também é história de Portugal, como a coisa foi realmente edificante.

E do pintor espanhol (de Sevilha) Antonio Garcia Villarán, que retratei acima.. As suas opiniões devastadoras (sobre algumas das unanimidades nacionais aqui ao lado) têm causado um impacto que ultrapassa já o youtube. Em filmes curtos e bem humorados, Villarán mostra as suas pinturas, desenhos e projectos de livros e fala do que gosta e do que não gosta. Sem eufemismos. Miró é o pior pintor de todos os tempos. Tapiés idem aspas aspas. E Salvador Dali. António Lopez, o autor do “hiper-realista” e fotográfico retrato oficial  da família real que alegadamente lhe custou “vinte anos de trabalho”, merece-lhe o mais vivo sarcasmo. Pollock, um embuste. E Frida Khalo, também. E Keith Haring. E todos os bonzos reconhecidos da chamada actual arte contemporânea internacional. Como Yoko Ono; ou Damien Hirst; ou Banksy.
Villarán criou mesmo um termo algo burlesco e subversivo, hamparte, que designa todo este tipo de arte que é arte apenas porque é designada como tal e porque a sua exibição é autorizada pelo mercado em locais apropriados, as galerias comerciais. 
Em 2018 este termo tornou-se viral. É verdade, ultrapassou mesmo o âmbito do seu canal do Youtube (que ainda assim ultrapassa já os 150 mil seguidores, contra os trinta mil da página de um gigante como o Museu do Prado) ganhando outras plataformas e chegando mesmo à imprensa. 
Villarán, que já considera que o seu neologismo seja acolhido pela Real Academia Espanhola criou, para evitar equívocos quanto ao seu significado, um manifesto em sete pontos que estipulam quando e em que circunstâncias uma obra deve ser considerada hamparte.
.
É evidente que nada disto fez desvalorizar uma merda como Damien Hirst, que no final do ano voltou a pulverizar records de facturação vendendo pontinhos coloridos e tubarões em formol. Diz que mais de 140 milhões de euros. Em verdade, quem lhe compra aquilo continua a lavar dinheiro, mas plo menos todo o mundo ficou a saber que não compra arte. Compra hamparte.
Também é verdade que o dadaísmo e as boutades anti-arte de Duchamp foram um sulfuroso sarcasmo dirigido aos valores que o mercado considerava arte… até serem apropriados pelo mercado.
Cabe aos espíritos livres e inconformistas criar sempre mais e mais sarcasmos; e cada vez mais sulfurosos. E assim sucessivamente, como dizia João César monteiro, outro grande subversivo.
.

Sem comentários: