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sábado, 26 de agosto de 2017

O eu e o outro

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Nunca recolhi material. Africano nascido em Moçambique, mas medrado em Angola desde mal saído do berço, a Angola devo a minha vida de escritor.
Quando em 1937 abandonei Angola, estava longe de vir a ser um escritor. Depois de reviver a minha vida de Angola, fazendo tábua rasa de ideias feitas, dando-me conta de erros de interpretação originados pelo clima social vivido desde a infância numa sociedade em formação, heterogénea pela sua própria natureza, sem outras raízes que não fossem os seus interesses circunstanciais, e sempre marginal, colocado, no tempo e no espaço, numa posição que possibilitou novas perspectivas: o homem e sua forte autenticidade.
E nunca mais deixei de estar em Angola, embora habitando em Lisboa ou no Rio de Janeiro, em Paris ou em Buenos Aires. Debruçado sobre a minha vida africana, servindo-me da minha própria experiência e da experiência dos homens que me levaram a meditar sobre a sua vida e no seu destino, procurei estudá-los, situando-os na sua idade histórica, no condicionamento do seu campo económico-social e nos planos das suas relações humanas. O homem em face do destino e nos limites da sua condição humana.
Libertado de todos os preconceitos e prejuízos, sempre considerei os homens humanamente iguais, embora de civilizações diferentes. Nenhum homem de cultura progressiva aceita a superioridade desta ou daquela civilização e sabe que os seus valores morais essenciais tem uma base comum. Daí a universalidade do homem para além das coordenadas definidas pelos padrões culturais que caracterizam as várias civilizações. Fora, ou à margem desta verdade, o homem toma posição racista, seja ele branco, amarelo ou negro. Uma posição anticultura. Tudo o mais diz respeito ao progresso das técnicas e das ciências, que qualquer homem de qualquer raça aprende, aplica e desenvolve consoante a sua capacidade e os meios que ponham ao seu dispor
Castro Soromenho
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Agora que, “à margem desta verdade”, está de novo em moda no mundo o preconceito racista, Portugal, como sempre, trata afanosamente do seu aggiornamento e, em simultâneo, da sua negação. Ao mesmo tempo que pululam nas redes sociais, e até nos media tradicionais, velhos preconceitos que se julgavam ultrapassados, o país oficial, com a boa-consciência que dá a má-memória – o nacional-porreirismo é filho lídimo da estupidez natural - assume o passado colonial da pátria como uma coisa neutra, ou até mesmo “compassiva“. Do género ”tá bem, a gente escravizava os gajos, obrigávamosios a trabalhar de borla e tal, mas era um são convívio, dávamos-lhes vinho e porrada a horas certas e até nos deitávamos com as gajas e tudo. Uma coisa que os esquisitinhos dos bifes, e os belgas, esses racistas de merda, nunca fizeram. E isto sem falar dos cabrões dos francíus; e dos estafermos dos alemões, os piores de todos.” Foi mais ou menos este discurso imbecil (somos os melhores dos piores) que o presidente Marcelo Rebelo de Sousa foi fazer à ilha de Gorée (ao largo de Dakar, no Senegal) um entreposto negreiro português desde o século XVI até ao XIX.
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Apesar de haver intelectuais (como a corajosa Alexandra Lucas Coelho) que hoje se manifestam abertamente por uma assunção pública de responsabilidades pelo desvario esclavagista do qual o país fez depender a sua economia por mais de quatro séculos, a verdade é que nunca houve por parte dos intelectuais portugueses (das ciências ou das letras) qualquer interesse pela humanidade do outro, do colonizado. Ou então nunca o manifestaram por obras. Envie-se um português à Lua ou a Marte e ele nunca manifestará um mínimo de curiosidade, só saudades de casa. Portugal esteve quatro séculos em Macau e nunca produziu um sinólogo - nunca nenhum português se interessou pela China, estudou a sua língua, a sua história, a sua cultura – é o mesmo que viver quatrocentos anos na savana e nunca reparar na existência dos elefantes. O mesmo aconteceu na Índia. E na América do sul. E na África.
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Também é verdade que houve excepções. Honrosas, ainda que a ditosa pátria as prefira esquecidas, e tão poucas que se podem facilmente nomear. O caso de Wenceslau de Moraes, por exemplo, que se fixou no Japão e se deixou mansamente japonizar, e o de Castro Soromenho, que se descobriu escritor e etnólogo quando deixou Angola para um longo exílio.
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Embora hoje seja completamente ignorado em Portugal e Angola, muito justamente, o reclame como um dos seus, a verdade é que Soromenho não se angolanizou. Ele foi apenas um escritor português raro, que nunca teve desassossêgos existenciais com a alma lusitana, delíquios de saudade da sardinha assada ou devaneios delirantes com a suposta grandeza da pátria amada ou da língua; também jamais carpiu melancolias ou perplexidades sobre a identidade nacional. Soromenho interessava-se genuinamente pelo outro, pela sua condição humana, e pela humanidade de ambos - só assim soube, com sincera curiosidade, como etnólogo, estudar outra cultura sem condescendência ou preconceitos de superioridade e, como romancista, mostrar sem qualquer manto diáfano de fantasia, a corrupção moral do sistema colonial português em toda a sua nefanda e crua iniquidade. E fê-lo em português. Um português assim era demasiado raro, demasiado excepcional, demasiado humano para ter pátria. E assim morreu. Apátrida, em S. Paulo, Brasil, como referia a carteira de identidade para estrangeiros de que era portador.
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