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Nunca
recolhi material. Africano nascido em Moçambique, mas medrado em
Angola desde mal saído do berço, a Angola devo a minha vida de
escritor.
Quando
em 1937 abandonei Angola, estava longe de vir a ser um escritor.
Depois de reviver a minha vida de Angola, fazendo tábua rasa de
ideias feitas, dando-me conta de erros de interpretação originados
pelo clima social vivido desde a infância numa sociedade em
formação, heterogénea pela sua própria natureza, sem outras
raízes que não fossem os seus interesses circunstanciais, e sempre
marginal, colocado, no tempo e no espaço, numa posição que
possibilitou novas perspectivas: o homem e sua forte autenticidade.
E
nunca mais deixei de estar em Angola, embora habitando em Lisboa ou
no Rio de Janeiro, em Paris ou em Buenos Aires. Debruçado sobre a
minha vida africana, servindo-me da minha própria experiência e da
experiência dos homens que me levaram a meditar sobre a sua vida e
no seu destino, procurei estudá-los, situando-os na sua idade
histórica, no condicionamento do seu campo económico-social e nos
planos das suas relações humanas. O homem em face do destino e nos
limites da sua condição humana.
Libertado
de todos os preconceitos e prejuízos, sempre considerei os homens
humanamente iguais, embora de civilizações diferentes. Nenhum homem
de cultura progressiva aceita a superioridade desta ou daquela
civilização e sabe que os seus valores morais essenciais tem uma
base comum. Daí a universalidade do homem para além das coordenadas
definidas pelos padrões culturais que caracterizam as várias
civilizações. Fora, ou à margem desta verdade, o homem toma
posição racista, seja ele branco, amarelo ou negro. Uma posição
anticultura. Tudo o mais diz respeito ao progresso das técnicas e
das ciências, que qualquer homem de qualquer raça aprende, aplica e
desenvolve consoante a sua capacidade e os meios que ponham ao seu
dispor
Castro
Soromenho
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Agora
que, “à margem desta verdade”, está de novo em moda no
mundo o preconceito racista, Portugal, como sempre, trata
afanosamente do seu aggiornamento e,
em simultâneo, da sua negação. Ao mesmo tempo que pululam nas
redes sociais, e até nos media
tradicionais, velhos preconceitos que se julgavam ultrapassados, o
país oficial, com a boa-consciência que dá a má-memória – o
nacional-porreirismo é filho lídimo da estupidez natural - assume o
passado colonial da pátria como uma coisa neutra, ou até mesmo
“compassiva“. Do género ”tá bem, a gente
escravizava os gajos, obrigávamosios a trabalhar de borla e tal, mas
era um são convívio, dávamos-lhes vinho e porrada a horas certas e
até nos deitávamos com as gajas e tudo. Uma coisa que os
esquisitinhos dos bifes, e os belgas, esses racistas de merda, nunca
fizeram. E isto sem falar dos cabrões dos francíus; e dos
estafermos dos alemões, os piores de todos.”
Foi mais ou menos este discurso imbecil (somos os melhores
dos piores) que o presidente
Marcelo Rebelo de Sousa foi fazer à ilha de Gorée (ao largo de
Dakar, no Senegal) um entreposto negreiro português desde o século
XVI até ao XIX.
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Apesar
de haver intelectuais (como a corajosa Alexandra Lucas Coelho) que
hoje se manifestam abertamente por uma assunção pública de
responsabilidades pelo desvario esclavagista do qual o país fez
depender a sua economia por mais de quatro séculos, a verdade é que
nunca houve por parte dos intelectuais portugueses (das ciências ou
das letras) qualquer interesse pela humanidade do outro,
do colonizado. Ou então nunca o manifestaram por obras.
Envie-se um português à Lua ou a Marte e ele nunca manifestará um
mínimo de curiosidade, só saudades de casa. Portugal esteve quatro
séculos em Macau e nunca produziu um sinólogo - nunca nenhum
português se interessou pela China, estudou a sua língua, a sua
história, a sua cultura – é o mesmo que viver quatrocentos anos
na savana e nunca reparar na existência dos elefantes. O mesmo
aconteceu na Índia. E na América do sul. E na África.
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Também
é verdade que houve excepções. Honrosas, ainda que a ditosa
pátria as prefira esquecidas, e
tão poucas que se podem facilmente nomear. O caso de Wenceslau de
Moraes, por exemplo, que se fixou no Japão e se deixou mansamente
japonizar, e o de
Castro Soromenho, que se descobriu escritor e etnólogo quando deixou
Angola para um longo exílio.
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Embora
hoje seja completamente ignorado em Portugal e Angola, muito
justamente, o reclame como um dos seus, a verdade é que Soromenho
não se angolanizou.
Ele foi apenas um escritor português raro, que nunca teve
desassossêgos existenciais com a alma lusitana,
delíquios de saudade da sardinha assada ou
devaneios delirantes com a suposta grandeza da pátria
amada ou da língua; também
jamais carpiu melancolias ou perplexidades sobre a
identidade nacional. Soromenho
interessava-se genuinamente pelo outro,
pela sua condição humana,
e pela humanidade de
ambos - só assim
soube, com sincera curiosidade, como etnólogo, estudar outra cultura
sem condescendência ou preconceitos de superioridade e, como
romancista, mostrar sem qualquer manto diáfano de
fantasia, a corrupção moral do
sistema colonial português em toda a sua nefanda e crua iniquidade.
E fê-lo em português. Um português assim era demasiado raro,
demasiado excepcional, demasiado humano
para ter pátria. E assim morreu. Apátrida,
em S. Paulo, Brasil, como referia a carteira de identidade
para estrangeiros de que era
portador.
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