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o que vale a pena ser feito vale
a pena ser feito bem
Nicolas
Poussin
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A Figueira da Foz é, infeliz e
consabidamente, uma cidade bastante pobre no que diz respeito ao património de
arte pública. O pouco que tem de inegável qualidade estética deve-se mais à
acção voluntariosa de alguns, poucos, cidadãos do que a iniciativa dos poderes
locais instituídos - o caso, por exemplo, do pequeno busto em bronze de David
de Sousa, de Leopoldo de Almeida, com arranjo arquitectónico do arquitecto
Carlos Ramos, iniciativa de alguns amigos do músico. Ali, à entrada do Bairro Novo, a dimensão escatológica do
desprezo público que os figueirenses votam à Arte e à Memória sublima-se no
relvado fronteiro, emblematicamente transformado pelo uso num verdadeiro cagódromo
canino.
A estátua de Manuel Fernandes Tomás, na praça
Nova, é aliás a única excepção e a única de dimensão verdadeiramente monumental (três metros de altura de
bronze sobre um pedestal também imponente). Apenas tornada possível por uma
subscrição popular (em 1907, para a qual contribuiu, dizem, o próprio rei D.
Carlos), desencadeada por quatro operários cujos nomes ainda lá estão, em
letras de bronze, sobre a pedra do pedestal. Inaugurada em 1917, a estátua não
é a habitual imagem majestática de um seráfico legislador ou de um estadista
triunfante mas sim a de um revolucionário em acção, toda inconformismo, movimento
e inquietação; a mesma inquietação que movia os quatro operários que a encomendaram
e que inspirou a ousada sensibilidade do portuense Fernandes de Sá, um notável e
quase esquecido escultor a quem posteriormente não chegaram as encomendas do
Estado Novo e que morreu amargurado em 1959 porque nunca lhe permitiram sequer que
ensinasse nas Belas-Artes.
Mas existe ainda, claro, o exuberante
pelourinho da Praça Velha; o admirável memorial modernista a João de Barros, do
arquitecto Alberto Pessoa; o busto solene de António Santos Rocha, de Raul
Xavier, agora nas Abadias e, ainda de Leopoldo de Almeida, dois frizos em baixo-relevo
sobre as portas da Caixa Geral de Depósitos; e dois painéis em pastilha de
vidro: o de António Lino, no Tribunal, e o de Zé Penicheiro, em notório estado
de degradação, na companhia das águas. Convenhamos no entanto que é muito poucochinho, e pobrezinho, mesmo para
uma cidade com apenas cento e trinta anos. - Ah!, existe ainda uma soberba peça
do meu amigo João Sotero, que ele, num achado genial, deu a forma de um totem a que chamou “desleixo” e que representa
precisamente, com desencantada ironia, e algum sarcasmo bastamente escarninho, esta
relação dos figueirenses com o seu espaço público comum.
Esquecida, ou negligenciada, pelo poder
central durante meio século - não existe na Figueira e em todo o seu concelho
qualquer monumento ou sinal público da política
do espírito do Estado Novo - nem heróis da expansão, nem mártires da
evangelização (nem sequer o imbecil e sacramental bronze do soldado colonial
com a G3 em punho e o pretito às costas em missão
civilizadora, já do estertor do regime).
Isto talvez explique porque na Figueira, e entre figueirinhas, não existe o salutar hábito de celebrar o herói
cívico - ou a gesta colectiva, ou o exemplo insigne, ou o poeta excelso, etc. -
de forma elevada, pela Arte; nem a tradição da educação visual desde piquenos;
nem o gosto, entre os mais crescidos, da contemplação da simples beleza das
formas pela sublimação da emoção ou pelas subtilezas da alegoria. A verdade é
que o figueirinhas não gosta de
História, prefere a anedota. Não aprecia o Belo, nem o Misterioso, nem o Único,
nem o Autêntico - deleita-se com o bonitinho,
o vulgar, a réplica, o sentimental. Detesta ópera mas adora telenovela. Abomina
o que é excepcional, transcendente, elevado.
Prefere tudo ao seu nível: banal, literal, raso, acessível. É a esta pitoresca estética do acessível que os poderes locais tentam agradar.
Vai daí, recuperada a democracia e o poder
local, a cidade rapidamente recuperou atraso
e o concelho é, hoje, no que concerne à arte
pública monumental ou ornamental (estátuas, memoriais, murais, etc.), um
verdadeiro museu, mas ao gosto do freguês,
ou seja ao peculiar gosto do eleitor local. - Toda esta pessegada obscena, incluindo
a que grassa plas freguesias, que é de arrepiar, teve o alto-patrocínio do poder local democrático. Trata-se, portanto, de obra-feita de autarcas eleitos. Uma verdadeira
galeria do medonho, a céu aberto, que tem de tudo, como um bazar de horrores: do
francamente patético do busto de
José Coelho Jordão, herança de Santana Lopes, (meio corpo numa bandeja, na
rotunda do Parque de Campismo) ao amplamente
ridículo da estátua do Pescador,
em Buarcos, do tempo de Aguiar de Carvalho, (uma bizarra figura de plasticina a
cagar no alto de um cocuruto de betão armado dentro de um tanque no meio de uma
rotunda) e ao ridiculamente pretensioso
triunfalismo da estátua do centenário,
da gestão de Joaquim de Sousa - num estilo estalinista vagamente requentado ou aprés la lettre que parece ter saído de
uma qualquer merdalávia nos confins
da antiga União soviética e de aí ter servido para comemorar mais um bizantino plano
quinquenal (bem sei que Dorita Castel-Branco é uma boa escultora mas todos
temos maus dias, ninguém é perfeito – a Monica Belluci certamente também se
peida mas tem o cuidado de jamais o fazer em público), passando pelo grotesco do inenarrável (do consulado
de Duarte Silva) e indiscritível monumento a Baden-Powell (esse mesmo, o oficial e cavalheiro do império
britânico que gostava de acampar com rapazinhos).
Agora no entanto que se aproximam de novo as
eleições, é tempo de avaliar o legado de dois mandatos consecutivos do autarca
de turno, João Ataíde.
Ataíde é um ex-juiz para quem as leis são
para interpretar. Como as partituras. Isso permite-lhe, por exemplo, isentar de
taxas um determinado espéctáculo por o achar
de interesse público. Também lhe
permite reunir à porta fechada, encerrar o hospital público dentro de um parque
de estacionamento privado e condecorar com a medalha municipal do altruismo um aviário cujo primeiro accionista
é conhecido plo petit nom de “o
negreiro”. Ou seja, governar a Figueira, para ele é música. Mas o seu legado não se fica
por aquí.
Como já enunciei acima, entre as
idiossincrasias do beautiful people
que elege o poder local na Figueira figura a crença, ou a “ideia feita” que uma
das atribuições do autarca eleito é “alindar” a choldra que habitam. Ora foi
isso mesmo que Ataíde fez. Mas fê-lo cumprindo à risca as rigorosas regras da estética do acessível que mencionei
acima. E assim elevou a pessegada a nunca vistas cumeeiras .
Começou com o busto do Aguiar e nunca mais parou. Ataíde já inaugurou mais
bustos, memoriais, murais, estátuas, monumentos e arranjos e re-arranjos urbanísticos e paisagísticos do que todos os seus antecessores juntos. O seu
legado é um prodígio político no apoio
à arte pública e ao empreendorismo na
decoração de exteriores. Um frenesim de
arrojo e de bom-gosto cujos méritos curiosamente um articulista avençado do
“jornal” As Beiras atribuiu, embevecido, a António Tavares, o vereador da
cultura. Na Figueira nunca há unanimidade: nem quanto ao nome do pai da
criança.
A verdade porém é que o ataídismo, como qualquer outro ismo
de índole populista, não foi possível apenas pela vontade de um homem, é desígnio
de muitos – tem sido um autêntico trabalho de equipa. Assim, embora Tavares
seja o patinho-feio do ataidismo, aquele que os figueirinhas
gostam de odiar, a verdade é que foi ele que lhes restituiu a escultura mais
amada e que melhor os representa, sequestrada por Duarte Silva desde as obras
do jardim público num pátio interior do museu municipal. A obra não é nenhum Miguel Ângelo, nem sequer um Henry Moore, trata-se apenas de uma
réplica em cimento de uma peça em barro que o escultor Laranjeira Santos
submeteu a avaliação no exame de escultura do seu curso de Belas-Artes. Um nu
académico algo rígido cuja pose languidamente reclinada o povo figueirinhas
primeiro estranhou, depois entranhou e logo a seguir, na sua infinita
perspicácia, crismou como Preguiça, e assim interpreta desde então, e como talvez nenhuma outra, o verdadeiro spleen da cidade.
Mas se António Tavares é o éderzito da equipa de Ataíde, o seu crestianoreinaldo é sem dúvida, José
Tavares - ou José Esteves, como é mais conhecido - o presidente da junta de
Buarcos. Tavares, o José, ou José
Esteves, é um verdadeiro pontadelança
da pessegada. Um concretizador nato
que leva o ataídismo aos píncaros.
Ousado. Inovador. Criativo. Incansável. Pertinaz. A vida em Buarcos é uma festa
permanente. Nem nos anos negros da crise faltou a iluminação festiva. No Natal
e no S. João. No Natal há presépios por todo o lado, com palhinhas verdadeiras.
Na Páscoa cruzes e palmas em todas as encruzilhadas, a cidade parece o vale dos caídos, é lindo (nunca como nos dias do ataidismo
os sinais exteriores da religiosidade popular estiveram tão presentes e em todo
o lado). E no S. João, ah no S. João. E depois, ou antes, é a
feira dos piratas, e a medieval. E
procissões. É só eventos. E animação claro, muita animação. E entre
as estações, o carnaval, que dura
todo o ano. Todo um modo de vida, subvencionado pla autarquia.
Mas Esteves é sobretudo incansável no incentivo
ao empreendorismo na arte pública. Sempre ousado e numa atitude insólita e pioneira,
elevou o ready-made à dignidade de
monumento (pegou num absoleto farol de socorro a náufragos e espetou-o numa
rotunda - assim nasceu a rotunda do
farolito, como o povo lhe chama);
e a instalação
(o monumento ao mineiro do Cabo Mondego, com a sua assemblage inacreditável de ferramentas, é um must de ousadia e de
literalidade – só lá falta, para a anedota sentimental ser ainda mais explícita,
o capacete com o coto de vela, o bornal da merenda e a gaiola com o passarinho
morto).
Esteves ousou intervir no muro do cemitério - é preciso abrir aqui um parêntesis (para
ressalvar que é sempre muito problemática a intervenção em espaços que o povo considera
sagrados – há tempos um presidente da junta quase foi linchado porque permitiu que
uma entidade ligada ao património mandasse rebocar dois baluartes da muralha de
Buarcos. Ninguém quer saber que a muralha era árabe e que o reboco consolida e impede
a desagregação de construções de pedra desigual. Para o bom povo a muralha quer-se
au naturel, com a pedra à vista e as
juntas pintadinhas de branquinho de preferência, como era nos livros da
terceira classe e mainada. Nunca mais
ninguém tentou consolidar a muralha sagrada; é o consolidas, filho).
Entretanto o painel de ladrilhos no muro do
campo santo foi um sucesso. Desenho esquemático e cor da anemia (como decerto convém ao espírito do lugar). Sincrético. E sintético. De
ir às lágrimas. Uma verdadeira elegia à horizontalidade.
Parece um Malangatana desenhado com as mãos atadas e os olhos vendados e pintado com os
pés com uma paleta frígida;
Esteves atreveu-se também com o do it youself, o monumento que não
carece de artista; é assim: Esteves quer e a obra nasce. Assim nasceu o monumento presumo que às cantarinhas (um poço fake, em tamanho natural com roldana e
tudo, também fake, na rotunda da cantarinha).
Tudo isto faz da Figueira um case-study da arte pública; ou vá lá, da decoração de exteriores. Hão-de cá vir sharters de especialistas para estudar o
fenómeno.
Mas Esteves não pára. Agora já ameaçou com um
monumento ao Infante D. Pedro. Esse mesmo. O duque de Coimbra. Senhor de
Buarcos. O filho mais esperto de D. João I. Irmão de D. Duarte. Regente em nome
de Afonso V. Um príncipe da idade média. O povo de Buarcos, descendente dos servos
da sua gleba, e os seus representantes socialistas não o esquecem. É ele o herói cívico cuja memória querem ver
perpetuada em estátua.
Lá vem mais pessegada. Sim, porque Ataíde
espera ser reeleito para um último mandato. E dizem que Esteves vai a vereador.
Isto parece que muda aos três. Mas a pessegada é que nunca mais acaba.
Isto parece que muda aos três. Mas a pessegada é que nunca mais acaba.
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1 comentário:
Já nos estava a fazer falta!
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