.
um dos maiores
inimigos de um homem de espírito é o
tédio
Charles
Baudelaire
De regresso à pintura. Ando há mais de um mês às voltas
com um auto-retrato. Nada de muito grandioso, um metro e dez por oitenta. Eu,
no atelier, uma tela branca e a minha cadela. Uma cena doméstica. Coisa íntima, de
género. Fundo escuro. Perspectiva cavaleira
(de cima para baixo, como se examina os insectos). Tons glaucos. Cinzas.
Verdes. Pérolas. Manchas nítidas. Contrastes surdos, linhas sinuosas. Ênfase nas
diagonais.
.
Todavia, mesmo quando não se tem hábitos mundanos, qualquer
veleidade de auto-análise é perturbada pelo rumor
do mundo. Esse ruído entra-me em
casa pela rádio, pela televisão, pela net e até pelas janelas. Desde que se
abriu a cratera na Ácatorze adeus
sossêgo, o trânsito passa-me agora
todo à porta - um filhodaputa de um inferno, de manhã à noite (e aos fins de
semana ainda é pior: comitivas intermináveis de pacóvios a passeio, em família,
para ver a ponte militar). Perturba-me
a introspecção. Desinquieta-me a
cadela, que não sossega para a pose. A minha rua – um troço da ex-nacional 111-
também está em obras (trezentos mil dele, em alegre e publicóprivada parceria
com a Brisa).
.
O buraco da Ácatorze pôs de novo a Figueira no mapa. A
abrir os noticiários. Como os figueirinhas
gostam. Contudo a cratera pôs também a nu a xelência
da inginheiria portuguesa. A
competência dos construtores. A vista-grossa da fiscalização de obras. Enfim, todo
o esplendor do empreendorismo cavaquista na província - mas também a conivência
dos poderes autárquicos em toda esta cegada triste.
.
O poder local democrático, cada vez mais sem receitas
próprias, inerme perante os interesses dos grupos económicos privados, das
opções cegas do poder central e dos caprichos dos fundos europeus, põe-se cada
vez mais a jeito na busca daquilo a que chama, com circunspecta jactância, “o
consenso” – que não passa daquilo a que, em português vernáculo e antigo se
chama, muito mais prosaicamente, “conchavo”.
.
Um dos campeões absolutos nesta modalidade polítiqueira
local é José Elísio. ZéElísio, o “pernas” - o afoito presidente da Junta de
Lavos. Depois do cambalacho da reformulação das freguesias, o “pernas” acaba de
participar noutra cegada patrocinada pelo governo anterior (que o meu amigo
Agostinho tem vindo a comentar e a documentar com profusão de pormenores
sórdidos, no seu blogue “Outra Margem”) e que decerto o coloca nos píncaros da
popularidade na sua freguesia.
Elísio conseguiu, com o inepto altopatrocínio do presidente da Câmara, um Ataíde socialista, chamar a si (a Lavos), a edificação de uma espécie de super-centro-de-saúde que agrupará os “utentes” de quase todas as freguesias de sul do concelho (levando ao encerramento dos centros de saúde destas e transformando Lavos numa espécie de Meca do turismo de saúde local), digam lá que não é de génio. Os fregueses e o comércio de Lavos estão exultantes. Pimenta no cu dos outros para eles é refresco.
Elísio conseguiu, com o inepto altopatrocínio do presidente da Câmara, um Ataíde socialista, chamar a si (a Lavos), a edificação de uma espécie de super-centro-de-saúde que agrupará os “utentes” de quase todas as freguesias de sul do concelho (levando ao encerramento dos centros de saúde destas e transformando Lavos numa espécie de Meca do turismo de saúde local), digam lá que não é de génio. Os fregueses e o comércio de Lavos estão exultantes. Pimenta no cu dos outros para eles é refresco.
.
A verdade porém é que os utentes das freguesias despojadas
dos seus centros de saúde estão invejosos. Apesar de enxofrados, nofundonofundo também queriam para eles
um autarca como o “pernas” (mesmo que fosse alguém só com duas).
Afinal estamos em Portugal. Somos todos portugueses. Este
é o país de “Os Lusíadas”. Onde todos os fregueses
partilham dos mesmos valores - aqueles
que se consubstanciam naquela palavra com que Camões culminou a sua obra. E que
define uma gente que só sente que prospera com o mal dos outros. Metade nem
sequer vota. A outra metade divide-se entre espíritos florentinos como ZéElísio, o presidente da junta, e
simples de espírito como Ataíde, o
presidente da Câmara.
.
E, ao contrário do meu amigo Agostinho, não vejo
alternativa a isto. Porque, ai de mim, também não vejo onde caralho enxerga
Agostinho uma maioria social de
esquerda.
As cegadas entorpecem-me a concentração. Distraem-me. E
nem sequer me divertem. Pelo contrário, aborrecem-me de morte.
.
Sem comentários:
Enviar um comentário