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Por vezes, chega-me uma ânsia ubérrima
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Por vezes, chega-me uma ânsia ubérrima, política,
de amar, de beijar o carinho em seus dois rostos,
e chega-me de longe um querer
demonstrativo, outro querer amar, por gosto
ou à
força,
o que me odeia, o que rasga ao rapazinho o seu
papel,
a que chora pelo que chorava,
o rei do vinho, o escravo da água,
o que na sua ira se ocultou,
o que sua, o que passa, o que sacode a sua pessoa
na minha
alma.
E quero, por isso, arranjar
a trança ao que me fala, ao soldado, os cabelos;
a luz, ao grande; a grandeza, ao garoto.
Quero engomar directamente
um lenço ao que não pode chorar
e, quando estou triste ou me dói a ventura,
remendar as crianças e os génios.
Quero ajudar o bom a ser o seu bocado mau
e tenho pressa de estar sentado
à direita do surdo, e responder ao mudo,
tratando de lhe ser útil no
que possa, e também quero muitíssimo
lavar o pé ao coxo
e ajudar a dormir o zarolho meu vizinho.
Ah este amar, o meu, este, o mundial,
Interhumano e paroquial, experimentado!
Chega-me no momento exacto,
desde o fundo, desde a virilha pública,
e, vindo de longe, apetece beijar o lenço do pescoço do
cantor,
e beijar o que sofre em sua sertã,
o surdo, em seu rumor craniano, impávido;
o que me dá o que em meu peito esqueci,
em seu Dante, em seu Chaplin, em seus ombros.
Quero, para terminar
quando estou à beira célere da violência
ou cheio de peito o coração, quereria
ajudar a rir o que sorri,
pôr ao malvado um passarinho em plena nuca,
tratar dos doentes enfadando-os,
comprar ao vendedor,
ajudar o matador a matar –coisa terrível –
e quisera ser bom comigo próprio
em tudo.
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(tradução de José Bento)
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O recentemente falecido Vasco Graça Moura achava Fernando
Pessoa um poeta demasiado sobrevalorizado (aos seus imensos admiradores isto
deve ter-lhes parecido uma deliciosa excentricidade
- tal como, aliás, a posição do poeta cavaquista em relação ao acordo
ortográfico).
Eu também acho (já agora, também acho Graça Moura
demasiado sobrevalorizado mas compreendo que entre as hienas o defunto mais
recente seja sempre mais celebrado). Contudo, aos admiradores de Moura, isto já lhes
deve parecer uma hedionda heresia.
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No fundo, acho que concordo com o tradutor
de Shakespeare porque desconfio de religiões com muitos prosélitos - como o
cavaquismo, o Benfica, o-inglês-no-jardim-escola, o crestianismoronaldismo e a senhora-de-Fátima, o empreendedorismo, o
respeitinho, o grande-consenso-para-sair-da-crise ou qualquer outro unanimismo ou
fenómeno de massas.
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Já Cesar Vallejo, por exemplo, não o acho sobreavalorizado.
Pelo contrário. Embora haja quem o considere "o mais importante poeta universal desde Dante" e seja universalmente reconhecido como um dos maiores poetas de língua
castelhana do século vinte, para mim é apenas o meu poeta de cabeceira (ao contrário de Graça Moura, eu não acho
que a literatura, ou a arte, seja um concurso de abóboras), desde que o descobri, vai para trinta anos, numa pequena antologia
de poemas coligidos, e magistralmente traduzidos, por José Bento.
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Ao contrário de Pessoa, a sua voz não é esquizofrénica e
imaginada, é una e vivida, nunca fingida. O seu discurso dolorosamente lúcido, sincero,
sombrio mas paradoxalmente solar, atinge-me em cheio “quando estou triste até à cabeça, e mais triste até ao tornozelo”. Vallejo
fazia com as palavras aquilo que Picasso fazia com as imagens: subvertia-lhes o
sentido “para intensificar a sua
expressão: do sofrimento, do absurdo, do sentimento de culpa, da revolta perante
a injustiça, do horror da guerra, das contradições de um ser entre pontos
opostos, da esperança de um mundo terreno de amor e compreensão entre os homens”.
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Por isso fiz-lhe um
retrato. A partir da sua foto mais conhecida. “Com a sua pensativa cabeça de pedra
peruana”, como referiu Pablo Neruda - num texto que redigiu um ano
após a morte do poeta em 1938, em Paris - que conclui assim: “Eras grande, Vallejo. Eras interior e
grande, grande como um palácio de pedra subterrânea com muito silêncio mineral,
com muita essência de tempo e de espécie. E lá no fundo o fogo implacável do
espírito, brasa e cinza... Salve, grande poeta, salve, irmão.”
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