todos os quadros têm teias de aranha no cu
Marcel Duchamp
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Nos anos oitenta do século passado, o chuveirinho de
fundos perdidos proveniente da então CEE achou em Portugal solo fértil para o
milagre económico e sociológico do novo-riquismo, que ficou popularmente
conhecido por “cavaquismo”. Mas também acabou por proporcionar um outro fenómeno
sociológico, e económico, inaudito na história de Portugal: a eclosão de um
mercado de arte na província.
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É verdade. De repente, num país atrasado e atavicamente pouco
dado a coisas do espírito - acabadinho de sair de uma ditadura de quatro décadas, de um pequeno sobressalto “revolucionário” e de duas intervenções assistenciais do FMI - pessoas
acabadas de ascender a uma próspera e inesperada classe média-alta descobriram
em si um ideal abstracto e, num inusitado interesse plo espírito das coisas, o amor acrisolado pela arte. Foi assim que médicos,
engenheiros, advogados, magistrados, altos funcionários e pequenos empresários com
poder aquisitivo e alma de connoisseurs,
de coleccioneurs ou de investideurs criaram as condições para que um pequeno
núcleo de artistas, alguns já activos desde os anos 40 e 50, se pudesse dedicar
à arte a tempo inteiro. Foi o caso de
José Penicheiro.
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O poder autárquico, pla aquisição de obras e encomendas
de arte pública, também deu um valioso contributo para a consagração destes petits maitres regionais; assim como o Serviço
Nacional de Saúde que, com o seu generoso patrocínio das multinacionais do medicamento,
permitiu a impressão mecenática de sucessivas e copiosas edições limitadas de
serigrafias e litografias cujos exemplares, assinados e numerados pelos
artistas, reproduziam originais e eram distribuídas, como oferendas, em alegres
congressos médicos pla província - num contributo precioso, e definitivo, para
a divulgação das suas obras e para a sua imensa popularidade.
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Na Figueira, por exemplo, não há casa nem casebre que não
possua as paredes engalanadas com uma destas (já desbotadas, no caso das
litografias) reproduções. O povo tinha mesmo os seus artistas preferidos. Contudo,
nunca houve unanimidade. A admiração popular, tal como no futebol, ainda hoje se
divide plos três grandes: Cunha
Rocha, Mário Silva e José Penicheiro.
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E contudo, dos “três
grandes”, Penicheiro era o artista menos óbvio para agradar ao novo gosto
dos novos burgueses emergentes - o seu trabalho era prejudicado pela má
qualidade dos suportes (cartão ou platex) e dos materiais (o guache e a tinta plástica)
e o seu imaginário, enraizado ainda em modelos neo-realistas, era povoado de
gente humilde e anónima numa paisagem ribeirinha sempre ligada ao universo do
trabalho árduo e penoso: no salgado, na pesca, na lota, em andaimes e estaleiros
- os novos-ricos, mesmo de origem humilde, não gostam que lho recordem. Também desprezam
o trabalho duro, que acham desqualificado,
e desconfiam da arte que o representa: invariavelmente acham-na subversiva ou,
no mínimo, inconveniente.
Mas foi isso mesmo que Penicheiro fez: encheu-lhes as
paredes das vivendas e dos palacetes de trolhas e marnotos, costureiras,
pescadores, moliceiros, lavadeiras e cavadores.
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A
grande arte de Zé Penicheiro
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Filho de um carpinteiro, Zé Penicheiro começou pela
caricatura em madeira. Bonecos em volume,
como ele dizia. Auto-didacta orgulhoso (quase até à arrogância) aprendeu o
desenho e aprimorou o traço na tarimba do humor gráfico e da caricatura de
imprensa, nos anos de chumbo da censura. Desenhador compulsivo, o seu traço
vigoroso, sintético e eloquente era alicerçado num sentido da composição
rigoroso, numa sensibilidade de colorista requintado – adquiridos ao longo de
muitos anos de trabalho na publicidade e na decoração – e num instinto
ornamental que se foi tornando cada vez mais sofisticado e exuberante.
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Quando o conheci, em 1981, trabalhei com ele em
publicidade. Aprendi imenso (a relevância do seu contributo para a linguagem
desta arte de comunicação dava para
escrever um tratado, um capítulo à parte
na sua vasta obra criativa (só semelhante ao de outro figueirense, Cândido
Costa Pinto. Este até com obra teórica publicada sobre o assunto, embora nunca
tenha exercido actividade na região). Mas em 84 (ou 85), quando trabalhei para ele - na impressão serigráfica dos
seus trabalhos – já ele se dedicava finalmente, em exclusivo, à sua paixão de
toda a vida, a pintura. Tinha mais de sessenta anos.
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Numa idade em que a maior parte dos homens calça as
pantufas e se senta ao borralho a olhar
para ontem, Penicheiro preparava-se para começar outra vida. Criativa. E
para consumar a sua obra – uma obra que teria, contudo, um carácter sempre reminiscente,
também a olhar para ontem, numa
espécie de interminável “Amarcord”.
Todavia, ao contrário de Fellini, não
existe em Penicheiro o conflito, o pormenor, o improviso, a blasfémia, o humor (ou
o sarcasmo), a revolta, a gargalhada, a obscenidade, a subversão, o grito.
Não
há rostos, nem olhares, nem expressões na sua obra. Nem se vêem das mãos as linhas
da vida, ou as unhas negras e as calosidades. Apenas vultos. Os homens, de
chapéu; as mulheres, de lenço na cabeça, sempre curvada. Tudo sob um manto
intrincado de manchas opacas, numa densa bruma esquartejada de harmoniosas decomposições
tonais atenuadas. E uma indelével impressão de nostálgica e solene mansidão
resignada.
Penicheiro não pinta o que vê, pinta o que viu. Ou melhor, a
impressão com que ficou.
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Foi esta visão sentimental, silenciosa e velada pela
distância do tempo que talvez tenha tranquilizado os novos (e até os velhos) burgueses.
A-do-ra-ram. Penicheiro tornou-se mesmo o artista mais premiado e
homenageado pelos “clubes de serviço”. Arrematavam tudo, em alegres e selectas
jantaradas. À peça ou à molhada.
A consagração popular veio depois,
naturalmente. O povo, como é sabido, aplaude sempre os vencedores.
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Porém, a coroa de glória de Zé Penicheiro, a verdadeira
consagração, surgiu já quase no fim da sua vida (e carreira, que os artistas
trabalham sempre até ao fim), em
2004: a encomenda de um mural monumental pela Universidade de Aveiro, para
comemoração dos seus trinta anos.
Nada mal. Para um homem
que se tinha feito a si próprio, que se gabava de nunca ter ido à escola e de toda-a-vida
ter nutrido um sincero desprezo pelo conhecimento académico.
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