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terça-feira, 20 de agosto de 2013

do sumséte ao fiúzingue e ao espelho d'água, ou a metáfora da figueirinha loira

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Tenho uma amiga que me acusa de dizer mal de tudo. Mas eu tenho um problema, Paula: sou hiper-sensível à fealdade e à estupidez e não tenho culpa de só eu reparar em certas merdas. Ou, pelo menos, de só eu o escrever, tornando públicas as minhas perplexidades.

Num texto de 2009, a que chamei “singularidades de uma figueirinha loira”, eu atribuía à comunicação social (que na Figueira é, verdade seja dita, exponencialmente mais sabuja do que na generalidade do país do respeitinho), alguma responsabilidade conivente nessa “marcha lenta e descendente” que é o triste e patético declínio da Figueira da Foz.

Depositava eu, então, alguma esperança nas redes sociais das novas tecnologias da informação.
Pensava, oh santa ingenuidade, que a facilidade de acesso à comunicação, dotando as pessoas de uma liberdade de expressão sem precedentes, levaria uma cidadania até aí silenciada (pela conveniência dos donos do poder) e alienada (com a conivência dos donos dos tradicionais meios de comunicação), a uma espécie de redenção: que a expressão livre da opinião e o debate alargado e sem filtros proporcionassem condições que, inevitavelmente, contribuíssem para consciencialização dos cidadãos e que, enfim, algum progresso fosse possível.

Não foi bem uma desilusão. Como na altura também referi, a constatação da realidade dificilmente defrauda as expectactivas de um pessimista. Parafraseando o grande José Mário Branco no seu devastador desabafo, “FMI”: “esta merda não muda porque a malta não quer que esta merda mude”. Mainada. Ponto.

Basta seguir com alguma atenção, mesmo distraída, os interesses e comentários dos usuários figueirinhas das redes sociais para se aquilatar da qualidade, e até do grau de alfabetização, de uma cidadania acéfala, acrítica, abúlica e imbecilizada pelo entretenimento vazio a que, babada e alarvemente, chama “animação”.
Receio por isso ter sido demasiado severo com a imprensa local; Convenhamos que, se esta é mole, reverente, beija-mãos, arrasta os pés e lambe-cus é porque afinal está à imagem da maioria dos seus leitores, o seu “público alvo”.

Esse público alvo é o mesmo que se manifesta nas redes sociais, enlevado e empolgado com eventos como o “sumséte”, uma iniciativa comercial que consistiu em convocar para um local específico, circunscrito na praia da Claridade, uma mole inaudita de pacóvios para desfrutarem, ao som de baile mandado por música gravada, de um fenómeno que se pode apreciar todos os dias, em qualquer lugar, sem consumo obrigatório ou compulsivo e de forma bem mais tranquila: o pôr-do-sol.

Essa cidadania voluntariamente inerme é a mesma que aplaude entusiasmada outro evento comercial, supostamente iniciativa de uma misteriosa “associação de jovens” que, sustentada por inusitados apoios empresariais e institucionais, levou a toda a cidade “o fiúzingue” que, segundo a organização, é “a fusão da arte, da música e da gastronomia” e que é todo um novo conceito de “animação”: contrataram bandas musicais da moda, conhecidos chefs da televisão e artistas muito in que pintaram garbosos e muito bem comportados grafittis nos mais visíveis muros da cidade (nada de caralhos nem fodasses nem morras ou abaixos nem outras obscenidades equívocas, mais ou menos lascivas, políticas ou sequer subversivas). Ah, e tudo muito in ingliche, ófecórse, para gáudio de toda uma geração de novos labregos que tem visíveis dificuldades com a língua portuguesa mas que cultiva uma compulsiva necessidade de demonstrar a si própria e ao mundo em geral que comunica entre si perfeitamente na língua do tio Sam e dos super-heróis da Marvel; um fenómeno que está aliás, a contagiar até a boa-sociedade: reparei num restaurante muito gurmê da cidade que, na sua tasquinha (uma dessas quitandas abarracadas que agora é moda instalar dentro destes eventos), anunciava, solícito: “sopas and fritos” - foda-se, e porque não “churrascos and caldeiradas”, caralho? E, já agora, porque não também “arroz doce and, you know, baba de camelos”, unh? Puta que pariu.

Essa cidadania embrutecida e alarve é o público alvo ideal para as inaugurizações do período pré-eleitoral. Num concelho em que a rede de saneamento básico não cobre ainda todo o território, as obras de requalificação da zona envolvente do Forte de Stª Catarina por exemplo, são um luxo absurdo no qual foram investidas somas pornográficas em materiais nobres como o granito natural, o aço patinável e o inox; e nem um cêntimo sequer na requalificação do forte propriamente dito. Não foi feito nem um pequeno esforço para aliviar esta edificação militar (património do tempo de D. João I, reconstruído pelos filipes e testemunha das guerras peninsulares) dos ridículos acréscimos que lhe foram sendo feitos durante mais de um século por inefáveis entidades ligadas ao turismo e por um inenarrável club de tennis que lhe está colado à ilharga, como uma carraça, desde 1917. Todavia ainda tiveram engenho para o intervencionar escalavrando-lhe, a nascente, mesmo junto à muralha, uma medonha escadaria, toda em betão armado.

Mas, como antevi aquia pièce de resistence da requalificação da zona envolvente do forte foi, sem dúvida, a construção de um espelho de água artificial à sua volta, a meia dúzia de metros da foz natural do maior rio português e do oceano atlântico.
E, na inauguração, estavam lá todos: as forças vivas - com as entidades oficiais e os seus séquitos, as oficiosas, com as suas eminências e as suas boas famílias (como os cardosos e seus afins) logo na primeira fila - e as mortas com os seus papalvos, aos milhares, de boca aberta, para assistir à fanfarra dos discursos e molhar os pés cansados no espelho de água.

Ninguém reparou que este reflecte uma ruína.
Estavam todos inebriados com o luxo asiático da zona envolvente.
Penso que esta imagem é bem a metáfora perfeita de uma cidadania de merda. Ou melhor, o retrato fiel de uma figueirinha loira.
Uma figueirinha decadente e loira que se mira ao espelho e nem sequer vê o triste e baço despojo que ele reflecte, hipnotizada com o brilho fátuo da moldura dourada.
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1 comentário:

Luis Filipe Gomes disse...

Muito bem escrito!
Atrevo-me a dizer, dolorosamente bem escrito!