Tenho
uma amiga que me acusa de dizer mal de tudo. Mas eu tenho um
problema, Paula: sou hiper-sensível à fealdade e à estupidez e não
tenho culpa de só eu reparar em certas merdas. Ou, pelo menos, de só
eu o escrever, tornando públicas as minhas perplexidades.
Num
texto de 2009, a que chamei “singularidades de uma figueirinha loira”, eu atribuía à comunicação social (que na Figueira é,
verdade seja dita, exponencialmente mais sabuja do que na
generalidade do país do respeitinho), alguma responsabilidade
conivente nessa “marcha lenta e descendente” que é o triste e
patético declínio da Figueira da Foz.
Depositava
eu, então, alguma esperança nas redes sociais das novas tecnologias
da informação.
Pensava,
oh santa ingenuidade, que a facilidade de acesso à comunicação,
dotando as pessoas de uma liberdade de expressão sem precedentes,
levaria uma cidadania até aí silenciada (pela conveniência dos
donos do poder) e alienada (com a conivência dos donos dos
tradicionais meios de comunicação), a uma espécie de redenção:
que a expressão livre da opinião e o debate alargado e sem
filtros proporcionassem condições que, inevitavelmente,
contribuíssem para consciencialização dos cidadãos e que, enfim,
algum progresso fosse possível.
Não
foi bem uma desilusão. Como na altura também referi, a
constatação da realidade dificilmente defrauda as expectactivas de
um pessimista. Parafraseando o grande José Mário Branco no seu
devastador desabafo, “FMI”: “esta merda não muda porque a
malta não quer que esta merda mude”. Mainada. Ponto.
Basta
seguir com alguma atenção, mesmo distraída, os interesses e
comentários dos usuários figueirinhas das redes sociais para se
aquilatar da qualidade, e até do grau de alfabetização, de uma
cidadania acéfala, acrítica, abúlica e imbecilizada pelo
entretenimento vazio a que, babada e alarvemente, chama “animação”.
Receio
por isso ter sido demasiado severo com a imprensa local; Convenhamos
que, se esta é mole, reverente, beija-mãos, arrasta os pés e
lambe-cus é porque afinal está à imagem da maioria dos seus
leitores, o seu “público alvo”.
Esse
público alvo é o mesmo que se manifesta nas redes sociais, enlevado
e empolgado com eventos como o “sumséte”, uma iniciativa
comercial que consistiu em convocar para um local específico,
circunscrito na praia da Claridade, uma mole inaudita de
pacóvios para desfrutarem, ao som de baile mandado por música
gravada, de um fenómeno que se pode apreciar todos os dias, em
qualquer lugar, sem consumo obrigatório ou compulsivo e de forma bem
mais tranquila: o pôr-do-sol.
Essa
cidadania voluntariamente inerme é a mesma que aplaude entusiasmada
outro evento comercial, supostamente iniciativa de uma misteriosa
“associação de jovens” que, sustentada por inusitados apoios
empresariais e institucionais, levou a toda a cidade “o fiúzingue”
que, segundo a organização, é “a fusão da arte, da
música e da gastronomia” e que é todo um novo conceito de
“animação”: contrataram bandas musicais da moda, conhecidos
chefs da televisão e artistas muito in que pintaram
garbosos e muito bem comportados grafittis nos mais visíveis
muros da cidade (nada de caralhos nem fodasses nem morras
ou abaixos nem outras obscenidades equívocas, mais ou menos
lascivas, políticas ou sequer subversivas). Ah, e tudo muito in
ingliche, ófecórse, para gáudio de toda uma geração
de novos labregos que tem visíveis dificuldades com a língua
portuguesa mas que cultiva uma compulsiva necessidade de demonstrar a si
própria e ao mundo em geral que comunica entre si perfeitamente na
língua do tio Sam e dos super-heróis da Marvel; um fenómeno que
está aliás, a contagiar até a boa-sociedade: reparei num
restaurante muito gurmê da cidade que, na sua tasquinha
(uma dessas quitandas abarracadas que agora é moda instalar dentro
destes eventos), anunciava, solícito: “sopas and
fritos” - foda-se, e porque não “churrascos and
caldeiradas”, caralho? E, já agora, porque não também “arroz
doce and, you know,
baba de camelos”, unh? Puta que pariu.
Essa
cidadania embrutecida e alarve é o público alvo ideal para
as inaugurizações do período pré-eleitoral. Num concelho
em que a rede de saneamento básico não cobre ainda todo o território,
as obras de requalificação da zona envolvente do Forte de Stª
Catarina por exemplo,
são um luxo absurdo no qual
foram investidas somas
pornográficas em materiais nobres como o granito natural, o aço
patinável e o inox; e
nem um cêntimo sequer na requalificação do forte propriamente
dito. Não foi feito nem um pequeno esforço para aliviar esta
edificação militar (património
do tempo de D. João I, reconstruído pelos filipes e testemunha das
guerras peninsulares) dos ridículos acréscimos que lhe foram sendo
feitos durante mais de um século por inefáveis entidades ligadas ao
turismo e por um
inenarrável club de tennis
que lhe está colado à ilharga, como uma carraça, desde 1917.
Todavia ainda tiveram engenho
para o intervencionar escalavrando-lhe, a nascente, mesmo junto à
muralha, uma medonha escadaria, toda em betão armado.
Mas, como antevi aqui, a pièce de resistence da requalificação da zona envolvente do forte
foi, sem dúvida, a construção de um espelho de água artificial
à sua volta, a meia dúzia de
metros da foz natural do maior rio português e do oceano atlântico.
E, na inauguração, estavam
lá todos: as forças vivas -
com as entidades oficiais e os seus séquitos, as oficiosas,
com as suas eminências e as suas boas famílias (como os cardosos e seus
afins) logo na primeira fila - e as mortas
com os seus papalvos, aos milhares, de boca aberta, para assistir à fanfarra dos
discursos e molhar os pés cansados no espelho de água.
Ninguém
reparou que este reflecte uma ruína.
Estavam
todos inebriados com o luxo asiático da zona envolvente.
Penso
que esta imagem é bem a metáfora perfeita
de uma cidadania de merda.
Ou melhor, o retrato fiel de uma figueirinha loira.
Uma
figueirinha decadente e loira que
se mira ao espelho e nem sequer vê o triste e baço despojo que ele
reflecte, hipnotizada com o brilho fátuo da moldura dourada.
.
1 comentário:
Muito bem escrito!
Atrevo-me a dizer, dolorosamente bem escrito!
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