A
discussão sobre o legado do colonialismo está por todo o lado (já
chegou às universidades, ao Quai d'Orsay, à pérfida Albion, ao
Museu de Berlim e até ao Vaticano) e chegou finalmente ao Museu
Municipal, através de uma exposição/instalação, produzida pela
Universidade de Évora, programada ainda pelo antecessor de Santana
Lopes.
O
actual presidente da Câmara Municipal teve porém, o cuidado de
fazer saber, através da Agência Lusa, que não concorda com tal
discussão mas não proíbe “para
não ter um novo
caso
Saramago,
mas
ninguém [do executivo] vai lá. Assumo a nossa história com honra e
honramo-nos muito da coleção do museu municipal".
Este
assunto mereceu-me alguma reflexão e meia dúzia de breves
considerações.
Eu
considero que o senhor Lopes tem todo o direito de concordar ou de
não concordar com o que quer que seja. Considero até que ele tem o
direito de o afirmar em voz alta em qualquer discussão. Mas também
considero que ele não tem o direito de se arrogar o privilégio de
poder proibir porra nenhuma, sobretudo a discussão pública do que
quer que seja.
Eu
também sou um cidadão português, como o senhor Lopes, mas, ao
contrário dele, considero que há muito da ”nossa história” que
não assumo “com honra”. Considero mesmo que grande parte dela
não só é muito discutível como é profundamente lamentável.
Considero,
por exemplo, que a
confinação forçada de mouros e judeus
(as mourarias
e judiarias,
três séculos); a
perseguição aos ciganos
(oito séculos e meio) a
Santíssima Inquisição
(três séculos), o
tráfico negreiro e a escravatura
como
modelo social e económico
(quatro séculos e meio), o
colonialismo moderno
(um século), a
ditadura fascista
(quarenta e oito anos) e o obscurantismo
fanático patrocinado pela santa religião
(persistente desde a fundação da nacionalidade) perfazem um balanço
nada glorioso, nem minimamente honroso, mas absolutamente vergonhoso.
A tudo isto ainda se pode acrescentar a
perseguição ao livre-pensamento,
que funcionou ininterrupta e alegremente durante cinco séculos (a
título de exemplo: no
séc. XVI Gil Vicente foi preso, Camões foi censurado e Damião de
Góis foi detido, espoliado de bens e morreu sarnento; no séc. XVII
Fernão Mendes Pinto foi censurado e Francisco Manuel de Melo preso e
degredado; no séc.XVIII António José da Silva foi torturado,
esquartejado e queimado vivo, o Cavaleiro de Oliveira foi exilado e
Bocage foi detido; no sec. XIX o general Gomes Freire de Andrade foi
enforcado; no sec. XX, entre muitos outros, perseguidos ou
aprisionados, o escultor José Dias Coelho e o general Humberto
Delgado foram assassinados).
Reconheço
que estes factos, facilmente constatáveis por quem sabe ler, podem
ser difíceis de aceitar por cidadãos como o senhor Lopes que,
emprenhados pelos ouvidos com o patrioteirismo
encadernado
nos manuais salazaristas e pelos olhos com o paroquialismo
envernizado
dos programas de televisão do senhor Saraiva, sentem-se hoje muito
ufanos da “nossa” história.
Mas
como é possível que o autarca que afirma, no plural da modéstia e
em acordês ortográfico, que “honramo-nos
muito da coleção do museu municipal“, seja
o primeiro e último responsável de que grande parte do imenso e
valioso acervo desse museu esteja afinal ainda por investigar e
catalogar? – unicamente por falta de vontade, ou de oportunidade
política, para financiar adequadamente a contratação de pessoal
competente e especializado. De que “se
honra”
então, exactamente, o senhor Lopes?
Por
quem se toma o senhor Lopes? Por quem nos toma o senhor Lopes?
Quem
pensa que é o senhor Lopes, que tutela uns serviços
de cultura
que ao cabo de três anos e meio de mandato ainda não foram capazes
de criar um único evento ou exposição de inequívoca relevância
artística ou cultural?
Quem
foi que votou no senhor Lopes, que quase no fim do seu mandato ainda
programa eventos agendados pelo seu antecessor?
Porque
raio de carga de água o senhor Lopes se concede a si próprio o
privilégio de autorizar,
com uma pretensa intenção condescendente, um compromisso assumido
pelo seu antecessor legalmente eleito?
Quem
lhe conferiu o poder supremo de proibir ou autorizar a discussão
pública de seja o que for, ou até de nutrir a percepção de que o
pode fazer?
Quem
foi que lhe inseminou um rei absoluto na barriga?
-
Devo acrescentar que estou convencido de que esta exposição teria
sido liminarmente cancelada, sem pruridos de tolerância - se
não tivesse sido produzida pela Universidade de Évora. - Porque
gente como o senhor Lopes, que nutre um respeitinho
reverendíssimo e supersticioso por tudo o que seja “doutor”,
jamais afrontaria uma entidade tão mística que cauciona
esses títulos com diploma.
Posto
isto, como é possível que alguém com o perfil do senhor Lopes seja
presidente da Câmara Municipal da cidade de Manuel Fernandes Tomás,
de Cristina Torres, de João de Barros, de Joaquim de Carvalho?
Como
é óbvio, não espero que qualquer destas perguntas tenha resposta.
Formulei-as porque, como livre-pensador e algumas aves, tenho
necessidade de espantar as minhas perplexidades. ---------------------------------------------------------------------------------
Na
imagem ao alto, o ridículo sem noção, em foto oficial de pose e de
aparato: o senhor Lopes passeia pla Figueira o seu esplendor
paroquial, com banda de música, cortejo de servidores, séquito de
beatas, três flamingos num guarda-sol, um padre e alguns basbaques.
|
1 comentário:
Concordando com a generalidade do texto, permito-me uma ligeira correcção: Damião de Góis, figura exponencial da cultura europeia do seu tempo e amigo íntimo de Erasmus em casa de quem foi recebido quando dirigia a Feitoria da Flandres, foi miseravelmente perseguido pela Inquisição valendo-lhe a protecção do Cardeal D. Henrique. Morto este, foi preso no Mosteiro da Batalha e, depois de longo penar, permitiram que se recolhesse na sua modesta casa de Alenquer onde acabou por ser assassinado, como demonstrou uma autópsia feita já no séc. XX a qual detectou uma fractura no crânio. É a opinião que Aquilino Ribeiro sustentou com base no resultado daquela perícia forense.
Enviar um comentário