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terça-feira, 18 de março de 2025

Breves considerações sobre o senhor Lopes, alguns dados históricos indesmentíveis e outras tantas questões suscitadas por factos igualmente comprováveis

 

 

A discussão sobre o legado do colonialismo está por todo o lado (já chegou às universidades, ao Quai d'Orsay, à pérfida Albion, ao Museu de Berlim e até ao Vaticano) e chegou finalmente ao Museu Municipal, através de uma exposição/instalação, produzida pela Universidade de Évora, programada ainda pelo antecessor de Santana Lopes.

O actual presidente da Câmara Municipal teve porém, o cuidado de fazer saber, através da Agência Lusa, que não concorda com tal discussão mas não proíbe “para não ter um novo caso Saramago, mas ninguém [do executivo] vai lá. Assumo a nossa história com honra e honramo-nos muito da coleção do museu municipal".

Este assunto mereceu-me alguma reflexão e meia dúzia de breves considerações.

Eu considero que o senhor Lopes tem todo o direito de concordar ou de não concordar com o que quer que seja. Considero até que ele tem o direito de o afirmar em voz alta em qualquer discussão. Mas também considero que ele não tem o direito de se arrogar o privilégio de poder proibir porra nenhuma, sobretudo a discussão pública do que quer que seja.

Eu também sou um cidadão português, como o senhor Lopes, mas, ao contrário dele, considero que há muito da ”nossa história” que não assumo “com honra”. Considero mesmo que grande parte dela não só é muito discutível como é profundamente lamentável.

Considero, por exemplo, que a confinação forçada de mouros e judeus (as mourarias e judiarias, três séculos); a perseguição aos ciganos (oito séculos e meio) a Santíssima Inquisição (três séculos), o tráfico negreiro e a escravatura como modelo social e económico (quatro séculos e meio), o colonialismo moderno (um século), a ditadura fascista (quarenta e oito anos) e o obscurantismo fanático patrocinado pela santa religião (persistente desde a fundação da nacionalidade) perfazem um balanço nada glorioso, nem minimamente honroso, mas absolutamente vergonhoso. A tudo isto ainda se pode acrescentar a perseguição ao livre-pensamento, que funcionou ininterrupta e alegremente durante cinco séculos (a título de exemplo: no séc. XVI Gil Vicente foi preso, Camões foi censurado e Damião de Góis foi detido, espoliado de bens e morreu sarnento; no séc. XVII Fernão Mendes Pinto foi censurado e Francisco Manuel de Melo preso e degredado; no séc.XVIII António José da Silva foi torturado, esquartejado e queimado vivo, o Cavaleiro de Oliveira foi exilado e Bocage foi detido; no sec. XIX o general Gomes Freire de Andrade foi enforcado; no sec. XX, entre muitos outros, perseguidos ou aprisionados, o escultor José Dias Coelho e o general Humberto Delgado foram assassinados).

Reconheço que estes factos, facilmente constatáveis por quem sabe ler, podem ser difíceis de aceitar por cidadãos como o senhor Lopes que, emprenhados pelos ouvidos com o patrioteirismo encadernado nos manuais salazaristas e pelos olhos com o paroquialismo envernizado dos programas de televisão do senhor Saraiva, sentem-se hoje muito ufanos da “nossa” história.

Mas como é possível que o autarca que afirma, no plural da modéstia e em acordês ortográfico, que “honramo-nos muito da coleção do museu municipal“, seja o primeiro e último responsável de que grande parte do imenso e valioso acervo desse museu esteja afinal ainda por investigar e catalogar? – unicamente por falta de vontade, ou de oportunidade política, para financiar adequadamente a contratação de pessoal competente e especializado. De que “se honra” então, exactamente, o senhor Lopes?

Por quem se toma o senhor Lopes? Por quem nos toma o senhor Lopes?

Quem pensa que é o senhor Lopes, que tutela uns serviços de cultura que ao cabo de três anos e meio de mandato ainda não foram capazes de criar um único evento ou exposição de inequívoca relevância artística ou cultural?

Quem foi que votou no senhor Lopes, que quase no fim do seu mandato ainda programa eventos agendados pelo seu antecessor?

Porque raio de carga de água o senhor Lopes se concede a si próprio o privilégio de autorizar, com uma pretensa intenção condescendente, um compromisso assumido pelo seu antecessor legalmente eleito?

Quem lhe conferiu o poder supremo de proibir ou autorizar a discussão pública de seja o que for, ou até de nutrir a percepção de que o pode fazer?

Quem foi que lhe inseminou um rei absoluto na barriga?

- Devo acrescentar que estou convencido de que esta exposição teria sido liminarmente cancelada, sem pruridos de tolerância - se não tivesse sido produzida pela Universidade de Évora. - Porque gente como o senhor Lopes, que nutre um respeitinho reverendíssimo e supersticioso por tudo o que seja “doutor”, jamais afrontaria uma entidade tão mística que cauciona esses títulos com diploma.

Posto isto, como é possível que alguém com o perfil do senhor Lopes seja presidente da Câmara Municipal da cidade de Manuel Fernandes Tomás, de Cristina Torres, de João de Barros, de Joaquim de Carvalho?

Como é óbvio, não espero que qualquer destas perguntas tenha resposta. Formulei-as porque, como livre-pensador e algumas aves, tenho necessidade de espantar as minhas perplexidades.

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Na imagem ao alto, o ridículo sem noção, em foto oficial de pose e de aparato: o senhor Lopes passeia pla Figueira o seu esplendor paroquial, com banda de música, cortejo de servidores, séquito de beatas, três flamingos num guarda-sol, um padre e alguns basbaques.






 

1 comentário:

Manuel Lima Bastos disse...

Concordando com a generalidade do texto, permito-me uma ligeira correcção: Damião de Góis, figura exponencial da cultura europeia do seu tempo e amigo íntimo de Erasmus em casa de quem foi recebido quando dirigia a Feitoria da Flandres, foi miseravelmente perseguido pela Inquisição valendo-lhe a protecção do Cardeal D. Henrique. Morto este, foi preso no Mosteiro da Batalha e, depois de longo penar, permitiram que se recolhesse na sua modesta casa de Alenquer onde acabou por ser assassinado, como demonstrou uma autópsia feita já no séc. XX a qual detectou uma fractura no crânio. É a opinião que Aquilino Ribeiro sustentou com base no resultado daquela perícia forense.