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sábado, 25 de junho de 2022

O sentimentalismo Osório


 

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O sentimentalismo, em Portugal, não é uma mera forma de expressão. É a expressão do eu em todas as suas formas – quase sempre enquistadas, porém melífluas, repenicadas, delicodoces, xaroposas.

Na literatura, o género, que já exasperava Herculano, tem sido detractado, com mais ou menos virulência, desde pelo menos Cesário Verde até Alberto Pimenta. Por motivos diversos, como é óbvio (Agustina, por exemplo, considerava que a exploração do sentimento era um artifício fácil e, como tal, vulgar, pouco elevado, até mesmo desonesto e estendia generosamente esta sua implicância à música, a mais emocional das artes, que também não poupava nos seus sibilinos, mas abrasivos, comentários).

O sentimentalismo foi, no entanto, sublimado por outros de não menor talento e atingiu os píncaros, no cânone da língua, com Antero, António Nobre (a nossa melhor poetisa, no parecer de Pascoaes) ou Florbela Espanca (Camilo é um caso à parte - condenado à vida a viver do sentimentalismo, apenas com o seu humor sombrio, um génio explosivo, um sarcasmo inflamável e um vocabulário incandescente e rebarbativo, ele criou toda aquela pirotecnia exuberante que transfigurou o género - em algo completamente diferente – numa espécie, ora abertamente equívoca, de recalcitrante comédia negra; ora veladamente explícita, de impenitente tragédia bufa).

Ou seja, o sentimentalismo atingiu altos padrões estéticos sempre que foi tocado pelo génio – como o de Antero, tomado pela vertigem do absoluto; ou o de António Nobre, contagiado pela derisão e pela auto-ironia; ou o de Florbela, possuída pelo destrambelho associal e pla ousadia sequiosa de infinito.

Nos nossos dias, o sentimentalismo é ainda bastamente cultivado, por exemplo por Valter Hugo Mãe ou António Lobo Antunes; mas só triunfa realmente fora do âmbito da literatura – por todo o lado, no jornalismo, na publicidade e até na comunicação política. Mas é sobretudo quando rasteja, isto é, quando é tocado pela canalhice e pela mediocridade – pla vulgaridade dos métodos e pla baixeza dos propósitos - que ele ganha asas, muitos laiques, compartilhamentos e comentários aprovadores e entusiasmados nas redes sociais e a consagração da popularidade. Um dos mais garbosos praticantes desta modalidade é Luís Osório.

E quem é esse Osório? Perguntais-vos vós.

- Bem, Osório é um xcritor e jornalista que escreve livros, embora o que ele escreve não se enquadre exactamente naquilo que se chama literatura, ou jornalismo. Osório tornou-se conhecido por ter escrito um livro sobre o pai e um sobre a mãe (o pai foi um comunista e homossexual que enfrentou a morte, de fatal doença contagiosa, com valentia e dignidade - a mãe foi uma senhora que escolheu dar-se a própria morte) nos quais chafurdou, sem escrúpulos nem pudor, na vida e intimidade dos progenitores e se empenhou em demonstrar, contra todas as naturais expectativas, a nulidade do legado dos genes e a inexorabilidade da redenção, isto é, do final feliz (o busílis deste género de sentimentalismo) - pois ele próprio (tudo o que Osório escreve é eminentemente sobre si mesmo) é hoje um perfeitamente convencional chefe de família, feliz pai de três pimpolhos perfeitamente convencionais e perfeitamente integrado na boa sociedade e no regime, porque até já “participou em comissões governamentais, coordenou a comunicação política de uma campanha presidencial e até é consultor empresarial” e tudo (tudo feitos fora do alcance de qualquer vulgar filho-de-comunista, ou filho-de-comuna de lineu, como é sabido). Além disto, também dirigiu jornais, uma estação de rádio e até já imaginou um programa de televisão e dirigiu uma vez uma peça de teatro. Hoje escreve postais diários, no face book. Crónica social e tal.

Mas senhor, porque vos agastais tanto com tal prosa, se não há nenhum motivo para que a continueis a ler, pensais vós.

- Pois pensais muito bem, jamais leria tais postas de merda se, em verdade vos digo, elas me não aparecessem, continuada e impunemente - para que as beba com os olhos, como dizia Fernando Pessoa - escarrapachadas no meu mural, piedosamente compartilhadas por alminhas devotas do santo sentimento. E se, quando assombrado com água benta, umbiguismo e presunção, não se apoderasse de mim, como de Luis Buñuel e do divino marquês, uma “cólera divina”. Aí tendes dois porquês.

E como é que ele faz para cativar aquele público (cada vez mais vivo, numeroso e ávido do que nunca) que esmifrou o génio do Camilo e lhe abrasou a visão e a mioleira? Perguntais-vos vós adredemente.

- Pois bem, titila-lhe a glândula túrgida da sensibilidadezinha à flor da pele, comicha-lhe a mucosa do ego empático e inflama-o, insinuante e insidioso, com frases curtas, doces evocações, exemplos melados, conspícuas revelações, inconfidências exclusivas, com muito enfoque nos bastidores, no episódico, no anedótico (em momentos, pormenores, detalhes, pequenas circunstâncias) sempre muito pessoal, muito intimista, muito sofrido, muito visceral, muito pungente, muito comovido, muito lacrimal, muito piegas, muito coscuvilheiro, muito lambe-cus, muito mórbido, muito enjoativo, muito repugnante. Tudo isto sobre um fundo de moralzinha mui serôdia e fraldiqueira coberto por um manto diáfano aparentemente desempoeirado, quase progressista, mas suficientemente palatável para o leitor que se comove por-tudo-e-por-nada e se deleita em baba e ranho mas não se engulha demasiado com o artifício fácil e com o senso-comum reaccionário e conformista, desde que venha tudo embrulhado em vocabulário muito mais acessível.

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1 comentário:

cid simoes disse...

O Osório é um finório e está muito bem no retrato.