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"A
Figueira participa do carácter que tem Coimbra, um pouco para pior,
porque os estudantes que frequentam a Figueira são ordinariamente os
piores, os mais broncos, os que não saem de Coimbra, aqueles em que
os efeitos do vício universitário se desenham mais
profundamente.
Estes
senhores com o seu afectado desdém, com o seu mau ar de críticos,
com o seu espírito de troça, e os srs. professores com a sua
sobranceria catedrática, constituem o grande senão da sociedade da
Figueira, sobre a qual destingem a sua cor especial.
E,
não obstante, nenhuma outra praia em Portugal possui as condições
desta para tornar agradável a estação dos banhos.
Batida
do grande mar, tendo à direita a bonançosa baía de Buarcos e à
esquerda os rochedos em que assenta o castelo de Santa Catarina, que
defende a foz do Mondego, a vila da Figueira oferece aos banhistas
incomparáveis condições.
A
povoação é rica pelo comércio do sal e pela exportação dos
vinhos da Bairrada.
Uma
companhia edificadora tem construído casas agradáveis, em um bairro
novo junto à foz do Mondego, em sítio elevado e sadio. Neste bairro
há um hotel, Foz
do Mondego,
onde se recebem hóspedes a 1$000 reis por dia.
A
vila tem ainda mais dois hotéis, o Figueirense
e
o da Praça
Nova,
um pequeno teatro, uma praça de touros e dois clubes: a Assembleia
Recreativa,
no bairro novo, onde se dança às terças e sextas-feiras, e a
Assembleia
Figueirense,
no antigo palácio dos condes da Figueira, onde se dança à
quinta-feira e ao domingo.
Além
das soirées
nos dois clubes, as senhoras costumam organizar concertos e bailes. A
soirée
é uma das grandes preocupações desta praia, e não será por falta
de contradanças que os banhistas deixarão de se regozijar neste
sítio.
As
burricadas e os pic-nics
a Buarcos, ao farol da Guia, ao palácio de Tavarede, vão-se
tornando cada vez mais raros.
Por
uma disposição superior, cujo alcance debalde nos esforçamos por
atingir, é proibido o ingresso dos burros no interior da vila, o que
não obsta a que lá entrem muitos - disfarçados.
O
passeio predilecto dos banhistas é a Palheiros, pequena povoação de
pescadores, a meio caminho de Buarcos, onde recolhem as redes da
sardinha.
Na
Figueira, entre a população fixa, que habita a antiga vila e
frequenta a Assembleia
Figueirense,
e a povoação flutuante, que habita principalmente o bairro novo e
frequenta a Assembleia
Recreativa,
não há hostilidades, mas existe uma forte emulação provinciana
que se descarrega muitas vezes em pequenos episódios dignos de
Dickens ou de Balzac.
A
viagem da Figueira é bastante pitoresca, mas não isenta de
incomodidades. Quer o viajante chegue a Coimbra às 3 1/2 horas da
tarde, quer chegue às 4 horas da manhã, tem de esperar até às 6
horas da manhã ou até às 2 1/2 da tarde para poder seguir para a
Figueira na diligência, que gasta seis horas neste caminho e pede
1$000 reis por cada lugar.
Na
imperial da diligência, como artista, em companhia alegre; ou em
carruagem descoberta, que se pode alugar em Coimbra, o caminho não
parece longo, porque a estrada é boa e a paisagem
lindíssima.
Entra-se
na vila por uma estreita garganta que se alonga para o viajante como
o bico de um funil. Se não é fácil a entrada pela foz do
Mondego...a entrada em diligência pelo funil acima referido não é
menos perigosa. Somente, pela via de terra é permitido ao viajante
um expediente, que se não usa na superfície líquida, e vem a ser:
desembarcar a distância respeitosa e entrar cada um na vila pelo seu
pé.
Ramalho
Ortigão in As
praias de Portugal
- 1876
Quando
Ramalho Ortigão passeava pla praia
da claridade
o
seu largo chapéu desabado e o seu bigode frondoso, à segundo
império,
nenhuma outra possuía
então “as condições desta para tornar agradável a estação dos
banhos”. Nesses tempos a Figueira era uma povoação “rica
pelo comércio do sal e pela exportação dos vinhos da Bairrada”.
Os banhistas ricos, de
hotel e de salão,
chegavam em Junho e por cá residiam até meados de Setembro; só em
Outubro vinham os pobres,
os gandareses,
os banhistas
de alforge - todos
os dias pla fresca, regressando a casa pla noitinha.
Entretanto
- embora se tenha esforçado sempre por se parecer com a imagem que
quis ver do relato de Ramalho, e sempre sem reparar demasiado no seu
óbvio acento irónico - a Figueira mudou. Foi mudando. Hoje em dia
já nenhum banhista aqui reside de Junho a Setembro.
Recentemente
Isabel Brites, presidente de uma pitoresca associação de
restaurantes local, confiou a um jornal que “Estamos
a ter, definitivamente, o verão mais baixo dos últimos anos”.
E que “há
menos turistas em permanência. Durante o dia não se consegue
encontrar um lugar de estacionamento onde colocar o carro, mas de
noite a cidade está devoluta. Aquilo que nós concluímos é que as
pessoas vêm de manhã à praia e regressam a casa ao final da
tarde”;
ou seja, só o banhista
de alforge
vem à Figueira - mas já não fica de Junho a Setembro; nem sequer
para as soirées. O que é um mistério insondável, porque à
terrinha não lhe falta animação.
Entretanto
também foi revogada a proibição de entrada de burros na vila, o
que é irrelevante porque a livre circulação - tanto de visitantes
como de residentes, disfarçados - sempre foi um facto reconhecido
que
justifica plenamente a afirmação de que na Figueira é
carnaval todo o ano.
A
vila fez-se cidade. Já não tem teatro (nem pequeno nem grande), nem
contradanças
ou concertos, nem sal, nem vinhos da Bairrada para exportar, nem
folha periódica onde o comércio local possa fazer publicar os seus
anúncios (é notório, aliás, que a cidade já quase não tem
comércio local).
Mas
tem casino (uma catedral), praça de touros, cinema (quatro salas num
buraco, num centro comercial), alguns hotéis, e muitos e muitos
bares e restaurantes e cervejarias. E outras tantas grandes-superfícies-comerciais. Ah, ainda tem comboio para
Coimbra. E, isto é claro e indiscutível, muito melhores
acessibilidades
rodoviárias do que no tempo do Ramalho.
Da ramalhal figura é que nem sinal. Nem uma placa, pequeno busto ou memorial. Nada. Nenhum vestígio do seu passo enérgico e da sua grossa bengala, inglesa, nem da sua ironia fina.
1 comentário:
Perdôo-lhe o que escreveu sobre "os srs operários"
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