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terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Reflexão contida (com Carlos de Oliveira e alguns factos tristes)

O espantalho Reboredo; na bruma, ao fundo, sob o cedro, no meu jardim.
Maiorca, baixo-Mondego. Hoje de manhã, 
pla fresca.
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No dia das eleições integrei uma assembleia de voto. A mesa nº1 de Maiorca fica no edifício decadente do Palácio do Conselheiro Lopes Branco, mais exactamente na sala que a Junta destinou à sua biblioteca. Foi aí que, para entretecer o tédio dos longos minutos esperando eleitores erráticos e recalcitrantes, me fui deixando absorver na leitura de um livro escolhido ao acaso. “Casa na Duna”, de Carlos de Oliveira.
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Li-lhe todas as quase duzentas páginas.Trata-se de um romance político sobre um tempo que já não existe. Mas também uma crónica social melancólica e expressionista. Uma estória de miséria humana e de decadência. 
Tudo se passa aqui bem perto de onde habito, nas terras desoladas entre a bairrada e o mar, a Gândara. Mas é bem o mesmo ambiente funesto e a mesma decadência sem moral, quase animal, de aqui e de agora, e de sempre; uma coisa sem redenção, opressiva como a consciência do ciclo das estações e da inclemência inexorável dos fenómenos atmosféricos extremos.
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Editado em 1943, é a primeira obra de um escritor então com apenas vinte e dois anos. Reescrita pelo autor para a sua re-edição em 1980, é uma obra-prima de frases curtas e descrição enxuta - mas exaustiva na observação atenta ao pormenor - do tempo, da paisagem, das personagens e do seu clima mental e motivações obscuras. 
Escrito num português saboroso e sem ambiguidades, não há neste romance nem um advérbio a mais; ou a menos. Tão bom como o melhor Simenon. Carlos de Oliveira haveria de escrever apenas mais cinco antes de morrer, em 1981, sem completar sessenta anos. Dois deles, "Uma abelha na chuva" e "Finisterra", obras-primas absolutas da nossa literatura do século vinte. É uma lástima que, ainda assim, um escritor como ele seja hoje tão pouco lido e referido.
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Em dia de eleição presidencial não pude deixar de pensar no país de hoje e na sua quasi unânime predisposição anímica para aceitar a ordem natural das coisas; e na acéfala aclamação geral de Marcelo Rebelo de Sousa; mas também na triste e canhestra imaturidade de alguns dos seus mais festejados escritores da actualidade; e em como tudo isto pode ser afinal indício da mesma atávica e venérea tendência para o opróbrio que o injustamente esquecido Carlos de Oliveira descreveu com mestria na sua “Casa na Duna”.
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2 comentários:

cid simoes disse...

E há também a belíssima poesia:

Vilancete Castelhano de Gil Vicente

Por mais que nos doa a vida
nunca se perca a esperança;
a falta de confiança
só da morte é conhecida.
Se a lágrima for cumprida
a sorte, sentindo-a bem,
vereis que todo o mal vem
achar remédio na vida.
E pois que outro preço tem
depois do mal a bonança,
nunca se perca a esperança
enquanto a morte não vem.

Carlos de Oliveira


Rogério G.V. Pereira disse...

Do mal o menos
a falta de freguesia
deu-te
boa companhia

Carlos Oliveira
tão querido
e tão pouco lido

(o poema trazido pelo CID é um espanto!)