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Os nossos egrégios avós que implantaram a
República portuguesa nunca concederam à mulher o direito de voto. Não o fizeram
apenas por serem um bando de façanhudos machistas prepotentes e
botas-de-elástico (está bem, também o eram um
pouco, mas era esse o ar do tempo).
Eles tinham a consciência bem aguda de que a população feminina estava, à
época, muito mais vulnerável à influência retrógada da Igreja católica e que,
se tivessem cedido aos arroubos das sufragettes,
tal significaria o regresso imediato e em
força (e por via democrática) do
país ao tempo de D. Miguel e da santíssima
inquisição.
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Os nossos velhos republicanos, positivistas, depositaram então todas as esperanças naquilo a que
chamaram instrução pública. Tinham
uma fé inabalável na literacia e no
conhecimento informado para remover de vez a idade média (o preconceito, a ignorância,
a superstição e a estupidez em geral) do espírito dos portugueses de ambos os
sexos.
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Pois bem, cem anos de instrução
pública depois, os tugas de todos os sexos já quase todos sabem ler, ainda
que não pratiquem demasiado. Continuam, por exemplo, a não fazer a mínima ideia
do que seja a razão pura, ou sua crítica; ou o espírito e a sua fenomenologia, ou sequer a Evolução das Espécies; ou o Capital e a luta de classes; muito
menos o que disse Zaratustra ou o
que escreveu Simone de Beauvoir. Eles lêem é José Rodrigues dos Santos e a
revista Caras.
É essa leitura informada de aventuras e curiosidades da
vida airada de príncipes encantados e donzelas em apuros que, juntamente com a devoção à televisão, lhes tem formatado
o espírito para sufragar alegremente a carreira política de carinhas larocas
como José Sócrates e Santana Lopes. Ou Pedro Passos Coelho. E que, a acreditar
nas sondagens de opinião, vai
propiciar a eleição de Marcelo Rebelo de Sousa.
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O prof. Marcelo Rebelo de Sousa é, de todos os
candidatos, aquele cuja falha de carácter
é mais notória a olho nu. Marcelo é, parece-me, aquilo a que se chama vulgarmente
um poltrão, um balelas, um fala-barato,
um tretas; um espírito equívoco e dissimulado, retorcido como o cepo de uma
olaia; um chiquinho-esperto intriguista e manipulador, ungido pela
predestinação. E a sua candidatura uma falácia, tão anedótica como a de Tino de
Rans.
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Filho de um fascista, ele próprio fascista quando jovem,
não foi à guerra defender o império
porque o papá era ministro. Afilhado do ditador, de quem herdou o nome próprio,
descobriu a social-democracia já
adulto, com o vintecincodabril (foi um coup
de foudre). Foi director do Expresso de Balsemão e líder do pêpêdê, mas
tornou-se conhecido, famoso, por ser especialista em tudo, e comentador, na
televisão. Foi aí, com o cinismo leviano dos velhacos que, durante anos, Marcelo
fez os malabarismos de prestidigitação cujas bolinhas de sabão deixam
hipnotizado todo um vasto eleitorado que se deleita, reverencial e alarve, com
a prosápia vazia dos doutores e com o
laifessetaile dos famosos.
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Marcelo é, no entanto, volúvel como uma borboleta: tem ideias
sobre tudo e para todos os gostos; e incontinente como um roedor: de cada vez
que mija tem uma ideia, não pára nunca de se reproduzir em contradições.
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Doutor em Ciências
jurídicas, catedrático de direito e conselheiro
de Estado, Marcelo também acredita, aparentemente, no Direito Divino. Só isso (ou uma qualquer excêntrica espécie de megalomania
mórbida) faria um candidato presidencial presidir também a uma coisa que dá
pelo nome de Casa de Bragança (uma
instituição que pugna pela legitimidade das pretensões
deste artolas e dos seus descendentes à
soberania de Portugal).
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Nunca confrontado, por jornalistas ou concorrentes, com
este aparentemente real paradoxo, ou imbróglio
ético-legal, de Marcelo espera-se que, caso seja eleito presidente da República
de Portugal, leve a assertividade filosófica e a coerência política ao limite
das suas óbvias consequências cómicas: que abdique de imediato do cargo em
favor de S.A.R., a quem reconhece o direito
divino, por hereditariedade, à chefia do estado. Ou que, no mínimo,
convoque um referendum ao regime.
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É esta a falácia da sua
candidatura - que, se sair triunfante, resume num desfecho anedótico todas as
partes gagas de uma república patética e da sua cidadania triste.
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