.
Não consigo pensar em
cegos sem me lembrar duma frase de Benjamin Péret (cito-a de memória, como
acontece com tudo o resto): “Não é verdade que a mortadela é fabricada por
cegos?” Para mim, esta afirmação, sob a forma de pergunta, é tão certa como uma
verdade do evangelho. Claro que algumas pessoas podem achar absurda a relação
entre os cegos e a mortadela, mas para mim é o exemplo mágico duma frase
totalmente irracional que é brusca e misteriosamente fulminada pelo estrondo da
verdade.
Luis Buñuel, O meu
último suspiro
.
De todos os cegos do mundo havia um de quem Luis Buñuel
não gostava nem um bocadinho. Era Jorge Luis Borges. “É evidente que é um bom escritor, mas o mundo está cheio deles. Além
disso, não respeito ninguém só pelo facto de ser um bom escritor. São precisas
mais qualidades”. A Buñuel o autor de Aleph parecia-lhe “bastante presunçoso e adorador de si mesmo.
Em todas as suas declarações, sinto qualquer coisa de pedante (sienta catedra, como se diz em espanhol)
e de exibicionista”. Isto, claro, além “do
tom reaccionário de algumas das suas conversas e do seu desprezo pela Espanha”.
.
Ao ler certas merdas nos jornais, tal como a Buñuel
apodera-se de mim “uma cólera divina. Como
se pode ter tão pouca vergonha?”. A verdade é que há pessoas que exibem publicamente uma presunção tão cega e tão cínica e uma hipocrisia tão pedante e tão sonsa que é revoltante. E fazem-no,sem pecado,
até com jactância, com um riso de puta na cara-de-pau.
.
clicar para ver melhor |
Vem isto a propósito de uma crónica publicada pelo
premiado escritor António Tavares no “jornal” As Beiras. Trata-se de uma
lamentação pela morte das livrarias.
O cronista, que sabe exactamente o número de livrarias
que existem em Portugal (e quantas fecharam em Espanha, quantos livros se
editaram e se importaram etc., etc., ) - lamenta muito o seu triste fim – refere mesmo
que “há hoje cidades que já não têm livrarias na verdadeira acepção da palavra”;
mas depois sugere que não deixa de se viver por isso. A seguir interroga-se sobre
como se repõe a “identidade que se vai perdendo e que se sabia ter qualidades” e
remata com uma graçola sonsa: diz que lhe perguntam onde se vende o “seu” livro
e que, “desfasado” que é do mundo, responde perplexo: “nas livrarias!”.
Reparem como o político florentino que subiu a pulso, estrategicamente,
com o discurso sempre semeado de números exactos, em ponto de rebuçado, naquela
ênfase de rigor tão do agrado do seu público alvo, os pacóvios, é afinal tão “desfasado”
do mundo. Nunca vi um escrito que ilustrasse tão bem um espírito.
.
Três dias antes porém, de esta crónica me aparecer à
frente para que a bebesse com os olhos,
estava eu a aparar umas guias que as minhas roseiras lançam para a rua quando
se acercou de mim o carteiro e me perguntou, um tanto constrangido, se eu
quereria por obséquio adquirir um livro uns tantos euros abaixo do valor
cobrado nas livrarias; e, tirado de dentro de um envelope, mostrou-me um
exemplar do prémio Leya deste ano, O coro
dos defuntos, de António Tavares. Explicou-me depois, embaraçado, que agora
aquilo fazia parte das suas obrigações. Declinei educadamente e o pobre homem
lá se foi embora, com o dever cumprido.
.
Não sei, devo dizer, se António Tavares é um bom escritor. Adaptei, faz já quase
trinta anos, dois contos seus (um deles muito bom) para banda-desenhada e fiz a
cenografia da sua primeira peça levada à cena (bastante mázinha por sinal, um
monólogo em verso branco vagamente existencialista do qual não percebi peva)
porque há coisas que, com vinte anos, se fazem por amizade. Com o fim da nossa
amizade perdi, confesso, o interesse por tudo o que lhe concerne, incluída a
sua obra, digamos assim, literária.
O
que me obriga, de vez em quando, a manifestar-me a seu respeito é o facto de
ele se ter tornado um político relevante (é vereador da cultura e
vice-presidente da minha autarquia) e de o seu pensamento, ou pelo menos a sua opinião
pública, digamos assim, me aparecer à frente dos olhos de cada vez que me pretendo
informar sobre os factos da terra que habito.
.
Não sei, por isso, se o que Tavares escreve hoje é literatura.
Mas se for o que publica no “jornal” As Beiras, parece-me mais mortadela.
E lamento profundamente o que a crise e a cegueira das
privatizações fizeram a uma das mais nobres profissões deste país, a dos
carteiros. Ao que eles chegaram agora, constrangidos pelos Correios de Portugal, a impingir charcutaria pelos portais.
.
Sem comentários:
Enviar um comentário