Um pintor é um homem
demasiado absorvido
pelo que vêem os seus olhos
para poder ter o domínio do
resto da sua vida
Vincent Van Gogh
(carta nº 620, ao seu
irmão Theo)
.
Conheço Joaquim Monteiro há mais de trinta anos. De um
estreito convívio nas noites longas de uma certa boémia figueirense dos anos
oitenta.
Mais velho do que eu, isso não impediu todavia que fosse crescendo entre
nós uma mútua consideração que, se que nunca chegou à intimidade (devido talvez
ao seu temperamento, de uma discrição que lhe vem, suponho, de uma reserva cautelosa, muito conveniente nos anos da agitação
clandestina) transformou-se numa amizade que resiste ao tempo.
.
Velho comunista e resistente, o Monteiro, como é conhecido, é um guardião da memória, bibliófilo
amador, coleccionador e arquivista compulsivo de velhos documentos,
fotografias, jornais e livros antigos. Grande conversador e contador de
estórias, da sua memória prodigiosa é sempre capaz de sacar um episódio
exemplar ou pícaro para apimentar uma boa gargalhada.
.
Com os anos e as vicissitudes da vida fomos, no entanto,
deixando de nos ver com a frequência de antanho. Contudo, quando isso acontece,
o Monteiro surpreende-me sempre com uma estória rocambolesca ou com uma
inesperada delicadeza.
Há dias encontrámo-nos na Figueira por acaso e diz-me de
pronto: “Ainda bem que te vejo que tenho ali no carro há mais de um ano uma
coisa para ti”. Conhecedor do meu gosto por velhos segredos pouco revisitados
presenteou-me com esta pequena preciosidade: uma edição fac- símile do primeiro tratado
de pintura impresso em português por um hoje esquecido frade do século
dezassete –
(do seu “Prólogo“ e do “Louvor da Pintura” nenhuma novidade: trata-se
da versão autorizada pela santa inquisição do ideal programático da contra-Reforma para as artes, em voga no
Portugal filipino de então. Nem da sua “simmetria”
ou da “Perspectiva”. Verdadeiramente
interessante, e muito instrutivo e útil para mim, são as suas preciosas receitas para o fabrico de tintas, de vernizes, de secantes, de betumes, de mordentes, e para a preparação de suportes; de “como se mezclam e assombrão as cores” “e os realços”, e o “modo de fazer cambiantes”, ou o “modo fácil para copiar hua cidade, ou qualquer cousa”. etc.) Uma maravilha..
Irmão mais velho do meu amigo Filinto Viana, tal como
Theo Van Gogh, Monteiro conhece bem o handycap
de que ambos padecemos; e parece transferir também para mim o desvelo generoso
e fraterno (quase paternal) que dedica ao seu irmão pintor.
.
Decidi retribuir-lhe com um retrato. Um singelo desenho,
que fiz no mesmo dia. Não está perfeito, nem sequer muito exacto, mas ele também
sabe que, como referia o grande Matisse, “l’éxactitude n’est pas la verité”.
..
2 comentários:
Como se diz agora no "feisse buque", gostei.
Um abraço ao Joaquim Monteiro.
Sim, fraternidade. No sufoco em que vivemos é reconfortante sentir que a amizade prevalece e se consolida.
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