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Without deviation from
the norm, progress is not possible
Frank Zappa
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O meu amigo João Sotero acaba, receio, de cometer uma obra-prima.
João é um escultor figueirense que, como muitos outros
figueirenses, teve que procurar longe da sua terra as oportunidades e o
reconhecimento que o seu talento merece. Fixou-se, há mais de vinte anos, no
Alentejo. Acaba aí de inaugurar um monumento. Na localidade de Igrejinha, que pertence
ao concelho de Arraiolos, onde reside.
Trata-se de um monumento aos combatentes da guerra
colonial. Ora João, tal como aliás é habitual
na sua obra, desviou-se da “norma”. A solução estética que ele concebeu não
podia estar mais distante da retórica habitual em monumentos do mesmo género
por esse país fora.
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O habitual, neste tipo de encomendas, é a glorificação beata
do “heroísmo” - ou pior ainda, do seu irmão mais imbecil, o “patriotismo” – de maneira que o povo entenda; isto é,
num formato que, embora com variantes adaptáveis aos terroirs locais, já vem do
século dezanove. Diga-se de passagem, que o povo só gosta do que entende e os
encomendadores da arte pública em Portugal ou gostam imenso de agradar ao povo ou
então têm muitas dúvidas da capacidade deste para discernir soluções mais
elaboradas (o que não deixa de ser irónico, e sintomático, tratando-se de
autarcas eleitos). Em suma, para
muito bom povo e para muitos dos seus representantes, um monumento é um
“equipamento” colocado ao ar livre, constituído invariavelmente por um corpo em
pose sobre um pedestal – ou seja, algo onde, por norma, de cima cagam as pombas e em baixo mijam os cães; salvo uma
vez por ano - no dia da efeméride – em que há sessão solene, com procissão de
dignitários, marcha lenta, discurso inflamado e deposição de flores.
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Como referi acima, a solução estética achada por João
Sotero não podia ser mais contra esta “norma”. Não tem pedestal, nem
grandiloquência, nem pose de aparato. As três figuras que João concebeu parece
que as tirou (não sei se conscientemente) do imaginário do cristianismo: os
seus três combatentes parecem arrancados
do gólgota e pousados suavemente sobre um aterro circular empedrado, num largo
de Igrejinha. As três cruzes, todas amputadas de um braço, transfiguram-se em
estranhas formas parecidas com o algarismo “sete”, amparam-se mutuamente num cambaleante
e solidário amplexo e constituem assim uma arrebatante composição cuja austera
simplicidade de ferros torcidos não deixa, de certo modo, de evocar Chillida.
Não
há ali mau-ladrão, nem bom-ladrão, nem ladrão assim-assim - nem sequer herói da raça ou mártir da pátria ou
outra qualquer palermice - só vítimas. É o que parece que nos diz João: na
guerra, em qualquer guerra, todos são vítimas.
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Peço desculpa ao João se extrapolei na interpretação. Bem
sei que a arte é uma linguagem que se dirige àquela parte do intelecto que não
entende línguas, mas também sei (ambos sabemos) que quando soltamos uma obra no mundo, ela deixa de nos pertencer, passa a estar aberta a todas as interpretações. Por
isso não resisti a verbalizar o meu entusiasmo e a partilhá-lo aqui. Confesso
que há muito que uma obra de arte não me atingia tão em cheio.
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Munícipe que sou da terra de João Sotero (onde o povo nutre
um verdadeiro culto pla preguiça e os
seus representantes encomendam, como monumentos, merdinhas como a homenagem aos escuteiros e o busto de Aguiar de Carvalho) não é sem
inveja que congratulo o povo de Igrejinha e os autarcas de Arraiolos, cuja
visão tornou possível esta obra magistral de João Sotero. Eles devem saber que
só mesmo pelo “desvio à norma” algum progresso ainda é possível.
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Acima, João Sotero, Monumento
aos Combatentes, aço corten. Igrejinha,
Arraiolos (imagem daqui)
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4 comentários:
Isso!
«...só mesmo pelo “desvio à norma” algum progresso ainda é possível.»
Gostei muito e subscrevo.
:) :)
conterrâneo (ele por adoção) e amigo do visado
fiquei feliz não só com a sua visão do monumento
como com o seu também monumental
retrato
vou divulgar por aqui
abraço
Fernando Campos, toca-me profundamente as tuas palavras e fico muito feliz pela tua interpretação da escultura. Quando uma obra permite múltiplas abordagens da mesma "verdade" ela está já a cumprir a sua função. Inquietação, sempre inquietação...
Temos que ver como, mas gostaria muito de ter essa caricatura ! Grande Abraço, joão sotero
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