Como já referi aqui, sou um coleccionador de acasos, objectos que recolho amiúde nas
minhas caminhadas. Com estes objects
trouvés construo por vezes umas composições vagamente escultóricas a que
chamo “achados”, que me servem para reflectir e (ou) sugerir a reflexão sobre
eles próprios e o que sugerem ou o que representam, combinados. Gosto de objectos com vida própria e prévia, da sua pátina
de uso ou de abandono, que associados a outros ganham outra vida, novos
sentidos e significados.
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Há meses, achei na borda de um caminho um pequeno cristo
crucificado, de bronze (ou latão), despojo certamente de algum rosário perdido e
deteriorado pelo tempo. Chegado a casa, depositei-o no atelier, junto de outros
objectos que acho, na esperança de que o acaso, como muitas vezes me acontece,
me sugira uma revelação.
Foi assim que se me revelou este achado.
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Devo dizer (embora disso já saiba quem visita este
blogue) que não acredito em nada. Nem na sua quinta-essência, Deus. Apesar disso,
como é óbvio, o conceito de sagrado
não me é estranho. O que me causa alguma estranheza e perplexidade é o modo como os
meus coevos vivem esse conceito, que penso que pode explicar a sua (deles) aparente indulgência
compreensiva perante fenómenos como, por exemplo, a corrupção
moral na vida pública.
Isto esclarecido, esta peça não é sobre a religião mas
sim sobre a religiosidade. Ou seja, não é sobre Deus ou o sagrado - mas
sobre o modo como os crentes se relacionam com esses conceitos.
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O fulcro da relação colectiva dos crentes com esse ser
omnipotente e omnisciente, que tudo criou e por tudo zela com igual
magnanimidade, é a oração. É através dela que as criaturas comunicam com o
criador. Contudo o que realmente cristaliza a devoção individual é a
promessa - a promessa é uma espécie de contrato individual que o crente faz
com deus, muitas vezes através de um intermediário (o seu filho-homem, a sua virgem-mãe
ou um qualquer santinho) em troca de
um favor especial. Em caso de deferimento,
o crente não se importa de pagar com o sacrifício – em géneros, dinheiro ou
então com a exibição pública de sevícias auto-inflingidas (esta ultima
modalidade, algo primitiva, é muito mal vista e tem sido mesmo censurada pela
Igreja - a entidade que tutela a actividade - porque dá mau aspecto aos turistas, preferindo
o contado, mais higiénico e seguro para a viabilidade perpétua do negócio.
Ou seja, o crente acredita num criador magnânimo e
infinitamente justo mas quer um tratamento preferencial. Este é, para mim, um
dos mistérios da fé.
Em termos profanos chamar-se-lhe-ia “cunha” ou “tráfego
de influências”. Penso que é isto que explica a natural condescendência dos
cidadãos pelo fenómeno da corrupção. Eles acreditam profundamente que
a carne é fraca e sabem (trata-se de um saber atávico) que nofundonofundo ninguém se safa sem um jeitinho; um favor especial,
um empurrãozinho. E que ninguém faz
nada por outrém sem o incentivo de uma atençãozinha.
Nem deus.
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Enfim, se o próprio grande criador é sensível ao pedido
de excepção e ao sacrifício - ou
seja, é corruptível - como exigir o inverso ao presidente da junta, ao fiscal
da Câmara, ao examinador de condução, ao vereador, ao chefe de finanças, ao
secretário d’estado, ao ministro, ao legislador?
É isso que ilustra esta
peça, a que chamei “Oração”. Ou “Promessa”. Que executei de forma sucinta, quase minimalista: com uma cunha de mogno
envernizada, um corpo de cristo em bronze e três pregos zincados; tudo sobre
uma tábua rasa, de pinho.
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1 comentário:
Gostei da peça, da génese da obra, do texto que a acompanha e do conceito que ilustra.
Mas ... ... e as peregrinações a pé? Não serão também uma espécie de "exibição pública de sevícias auto-inflingidas"?
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