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O meu amigo Carlos
Figueiredo é,
talvez, o mais antigo e sincero admirador do meu trabalho. Desde cedo
o demonstrou enfaticamente - o que muito me honra, sensibiliza e
desvanece. Num meio cultural e
comercial (o dos
apreciadores de arte
na Figueira da Foz) adverso – composto em partes quase iguais por
ineptos pretensiosos imbecis pedantes, saloios cínicos,
chico-espertos e bimbos armados aos cágados, enfim pela fina-flor da
mediocridade - Carlos é um caso raro, único, um verdadeiro
connoisseur
(ele reconhece um bom quadro até pelas costas e um bom desenho só
pelo cheiro).
Aqui
há tempos, cerca de dois anos, propus-lhe um negócio - uma troca
de serviços (Carlos também é um artista, um vitralista de mérito
e um moldureiro exigente e competente) e imediatamente ele cumpriu a
sua parte. A minha, a execução de dois retratos, cumpri-a apenas
pela metade. A parte que faltava é o quadro acima reproduzido, que
concluí há poucos dias, um retrato do próprio Carlos com o seu
melhor amigo, como ele me pediu. Trata-se de uma pintura minimalista,
quase um desenho, a preto e branco, sem lambidinhos nem baboseiras –
o cão, num glacis de preto (sucessivas velaturas de tinta
muito diluída); o homem, na mesma técnica mas às avessas, em
sucessivas e espessas camadas de branco sobre o fundo neutro, aos
quais acrescentei apenas, no canto inferior direito, um pequeno
quadrado, branco - um pormenor que muitos acharão anedótico ou
simplesmente decorativo mas de que o Carlos saberá decerto tirar algum deleite estético e óbvio proveito intelectual, interpretando- lhe as
implicações.
As
razões da minha infame e imperdoável procrastinação devem-se
contudo a questões existenciais, que em mim são recorrentes, sobre
a utilidade da arte e da prática da pintura num meio tão hostil a
manifestações do espírito: pintar para quê? - para
quem?
Porém,
ao retomar os pincéis e pondo-me ao cavalete, aproveitando uma
avaria no computador que me distanciou da bloga e das caricaturas,
depressa essas dúvidas se dissiparam e descobri, quiçá, uma das
mais belas utilidades da pintura: a expressão da gratidão.
Continuo
no entanto a pensar que é uma lástima que uma arte tão útil seja
cada vez mais selecta. Mas a verdade é que são bem poucos os que,
como Carlos, lhe conhecem os códigos e lhe tentam compreender os
mistérios.
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4 comentários:
Um texto belo e um quadro tocante.
Abraço,
mário
Sim é verdade a arte é gratidão eu tenho uma teoria de que é voto e ex voto.
E também acho que é aquela coisa que se produz à semelhança da ostra e que pode acabar no museu como as que estão na sala de René Lalique do Museu da Fundação Calouste Gulbenkian, no pescoço de alguém à laia de troféu ou a ser pasto de porcos.
O quadrado branco parece-me belo para um artista que é vitralista e por isso trabalha com luz e que ainda por cima é moldureiro
Gosto do quadro, não sei porquê mas gosto. E sempre manifestei a minha admiração e ‘inveja’ pelo trabalho do Fernando Campos tal como pela sua irreverência. Sem complexos… Gosto!
Gosto.
Obrigado por partilhar connosco.
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