“Cerrou
o livro e ruminou em torno um olhar pacificado pela digestão. O
estabelecimento chamava-se café Colonial e era uma nave dormente.
Ficava do outro lado da avenida, em oposição à gare rodoviária.
No mostrador de vidro do balcão, a comida, como quase nunca a vida,
era a cores. A uma das cadeiras da mesa de Camilo, havia uma revista
com Lady Di a fazer capa. À mesa da janela, duas senhoras que eram
putas comiam pastéis de bacalhau. “Há sempre putas perto das
rodoviárias e dos caminhos-de-ferro” - diria Camilo Ardenas, sem
abrir a boca, se pudesse lembrar-se de passados comboios, de
pretéritas rodoviárias e de idas putas. Aquelas duas madalenas
empurravam o bolo alimentar com golfadas de cerveja preta.
Uma
estava toda vestida, calçada e brincada de lilás. A mastigação
aberta traía-lhe um dente azul, em cujo azulejo rechinava de saliva
um fiapo ambulatório de bacalhau. A outra envergava verde e azul
como uma varejeira. Suspendia da cabeça pequenina um largo par de
brincos de plástico brilhante que semelhavam olhos laterais e
doentes. As duas levantaram-se e saíram porta fora. Ao sair, eram de
novo soldados em combate.
Camilo
Ardenas entrou na sinopse de Diana Spencer. Comoveu-o a melancolia
interminável da princesa viva e quando esposa de um príncipe que
parecia ter nascido para consultar clandestinamente, no 221-B de
Baker Street, a perícia de Sherlock Jeremy Brett Holmes a propósito
de cornos conjugais. Pediu mais um café, abandonou a revista e
espreitou a rua.
Tinha
parado de chover. Enquanto o café não vinha, Camilo foi à porta
consultar o céu. A maravilha era a chuva ter parado em plena queda.
Erguendo a cabeça e o olhar, foi-lhe possível ver que a chuva,
congelada em plena precipitação, era agora uma espécie de lustre
de agulhas suspensas, tais varetas de aço que só esperavam por uma
ordem de Cima para cair e matar de novo os mortos e quanta memória
deles sobrasse nos vivos. Camilo Ardenas gostou desta avaria da
Natureza. Recompensou-o sentir que também as coisas podiam
apresentar uma desordem natural, um esplendor de sucata, uma demência
caprichosa, um capricho alcoólico. Tornou à mesa, aguardado pela
chávena nova, mas não já por Diana. Pediu um cálice de porto e
para telefonar. Telefonou. Não o atenderam.
A
mesa que tinha sido das putas estava agora ocupada por uma senhora
vasta. Era um porta-aviões ginecológico torpedeado sem clemência
pela idade. Camilo calculou-lhe oitenta anos. Não era para menos.
Maquilhada de alguns oito boiões diferentes, parecia sonolenta,
bocejando de sob os cremes. O rímel pesava-lhe nas pestanas como
lixo num toldo. A boca era-lhe um trapo escarlate. O pescoço descia
por camadas geológicas. Os seios, enrodilhados em arame e tela,
subiam num decote murcho. As mãos de pergaminho terminavam em ossos
sardentos e tão couraçados de anéis, que se diria usar soqueiras
de gangster. Asfixiados e esquecidos no chão dentro de sapatos de
salto alto, os joanetes eram rotundos como hematomas de cálcio
úrico. Enroupara-se com uma elegância anacrónica e piedosa de
coquette.”
Daniel
Abrunheiro
in
Terminação do Anjo - Portugália Editora, 2008