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terça-feira, 10 de novembro de 2009

Apologia da pichação (2)


Compreendo que o post anterior, com as implicações jurídico-legais de uma espécie de apelo à desobediência civil, choque as boas almas, e o povo em geral, que não gosta do vandalismo ambiental dos jovens suburbanos. O bom povo aprecia “ordem”, “obra feita” e “merdas bonitas”. E é bastante mais compreensivo com a especulação imobiliária e o crime organizado. Também compreendo: nada discute tanto o sacrossanto conceito de Propriedade como a pichação.
Ao contrário da arte antiga, que se pode facilmente encontrar em palácios, museus e igrejas, a arte de hoje não está nas galerias comerciais ou nos centros de exposições ditos de “arte contemporânea”.
A verdadeira arte de hoje está na rua - é verdade que é preciso saber ver para a distinguir do caos urbano mas, como se sabe, as flores mais belas acham-se amiúde no meio do lixo.
A cultura contemporânea reinventa constantemente os seus paradigmas. Um desses paradigmas é o da arte. Se esta é uma forma subtil e sofisticada de linguagem, aquilo que chamam “arte contemporânea” atingiu, neste início de século, o grau zero da comunicação.
As galerias privadas mais “in” e os centros de arte contemporânea foram pacificamente tomados de assalto pelos herdeiros menos dotados de Marcel Duchamp. Assenhorearam-se do mainstream e do "negócio". O que se pode encontrar aí é um amontoado patético de elucubrações pseudo “não-retinianas”, tão pífias como pedantes, que são resultado das “reflexões conceptuais” destes filhos e netos do tio Marcel. Estes filósofos do conceito conseguiram transformar as devastadoras blagues anti-arte do seu émulo numa espécie nova de academismo tão estéril e ridículo como o que esse blagueur sarcástico, escarninho e genial invectivava (é esta a tragédia dos génios compreendidos: fazem escola e os imbecis são os seus discípulos mais dedicados).
Nesses templos modernos de “fruição cultural” a experiência sensorial proporcionada pela arte - o deleite estético - é como o orgasmo da frigidez: fingido, snob e por sugestão auto-induzida; só se "chega lá" através da vasta literatura anexa. Duvido muito que nesses antros alguém possa padecer do “síndroma de Stendhal”.
É neste contexto que se explica o meu elogio da pichação.
Nutro uma sincera admiração por estes jovens desenraizados que vivem em guetos anónimos nos subúrbios das grandes cidades; sem esperança nem trabalho nem pátria nem empresa nem referências, nem futuro; que praticam clandestinos a única liberdade de expressão possível e nela encontram uma visceral identidade.
Não respeitam a propriedade privada nem as glórias de antanho. Embora não tenham, como os proletários do Manifesto Comunista, “um mundo a ganhar”, também já nada têm a perder. A sua arte é um imenso panfleto desesperado.
Para eles, um muro erguido é uma tentação, uma parede branca uma oportunidade e qualquer monumento um desafio.

1 comentário:

CS disse...

A "rua" lembra manif. e enerva os "bem pensantes". Tadinhos...