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A edição de 2019 do renascido festival
internacional de cinema da Figueira da Foz decorreu durante dez dias sem
perturbar a estação de banhos. Durante dez longos dias (uma ousada
ingenuidade da organização, que também me concedeu a liberdade de criar o
cartaz deste ano), enquanto o Festival projectava as suas metragens longas e
curtas em salas às moscas, todo o glamour desfilava no Picadeiro, que regurgitava
de banhistas passeando o bronzeado e o balão de Gin, ou a bjeca, plas
esplanadas.
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Assim, e como sou muito próximo de alguém da organização,
tive o equívoco privilégio de assistir de camarote a mais uma expressiva
demonstração da indiferença dos figueirenses pelas coisas do mundo em geral e
pelas do espírito em particular. Trata-se de um fenómeno transversal a
toda a sociedade figueirinhas: do lumpen à classe média, passando plos senhoritos
e incluindo aquele núcleo de pessoas do milieu, digamos assim, da
cultura, e da comunicação social. Todos, mais a população flutuante
(a taxa de ocupação hoteleira está acima da média em Setembro) fizeram questão
de manifestar o seu total desprezo por uma rara oportunidade de conhecer e
discutir 168 filmes, e os modos de os fazer, oriundos de 57 países e culturas
habitualmente afastados do sistema de distribuição comercial e dos meios de comunicação
de massas.
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Lima Barreto dizia do seu país: “O Brasil não tem povo,
tem público”, querendo com isto dizer, creio, que o brasileiro não agia, só
assistia. A verdade é que, mesmo para se assumir o papel passivo de espectador
é necessário, ainda assim, um mínimo de curiosidade, essa centelha que
permite que alguma luz ilumine o cérebro e lubrifique a argamassa
cinzenta que edifica a consciência e consolida o entendimento.
Ora a Figueira da Foz de hoje, e de sempre, não só não tem
povo como também não tem público. Não age e nem sequer assiste. Este não
querer ver-não querer saber é afirmativo, ostensivo, militante,
orgulhoso - totalmente destituído de qualquer centelha de curiosidade - o que, curiosamente,
não obsta que nas redes sociais figueirinhas pulule a opinião ufana,
categórica, definitiva; sobre tudo e sobre nada.
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A Figueira é, por isso, um lugar estranho. Bizarro.
Excêntrico e concêntrico. Habitado por uma gente tão amorfa que, embora vote
cada vez menos, continua, impune e alegremente, a eleger deputados e vereadores
e presidentes. E, extravagante, continua com uma invicta e notável capacidade de
atracção, na estação de banhos, de uma gente igualmente vazia,
igualmente destituída de curiosidade ou de qualquer interesse que não seja pelo
óbvio, ou pelo imediato.
A Figueira é a prova viva(!?), física, definitiva, que o vácuo ocupa
lugar – um lugar oco, mas denso; vazio, mas incontornável – opaco, impenetrável a qualquer centelha de luz.
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Mas se as sessões estiveram às moscas, a gala de entrega de
prémios esteve compostinha, no Salão de Festas do Casino (essa catedral). O Festival
Internacional de Cinema da Figueira da Foz acabou, como de costume, em modo
litúrgico e em apoteose com copiosas juras de amor ao cinema, ao som da marcha
do vapor.
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:-(
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