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Há
monumentos ou sítios que se tornam símbolos, ícones, ex-libris de um
local ou de uma comunidade. Há outros que, além disso, se tornam também
emblemáticos de uma atitude colectiva e de uma prática sistemática, por
indiferença ou premeditação. De certa maneira, uma maneira muito enviesada e figueirense,
este é o caso do Forte de Stª Catarina de Ribamar da Figueira da Foz.
Em
todo o concelho há, infelizmente, mais casos semelhantes (o fortim de
Palheiros, a capela de Stª Eulália, o Paço de Maiorca, o convento de Seiça),
mas esta fortificação militar é o exemplo acabado e ilustrado deste
paradigma genuinamente figueirense. Trata-se de um monumento que representa emblematicamente,
como talvez nenhum outro, a indiferença ressentida e rancorosa e
o desprezo vingativo que são os ingredientes da atitude, do
sentimento, que os figueirenses (as autoridades e os paisanos, de
geração em geração) nutrem pelos seus sinais identitários, pelo seu
património em espaço público e pela história, a memória, a cultura e a arte em
geral (sobre este assunto específico já me permiti algumas copiosas
considerações, aqui).
Embora
esta sanha vingativa e exterminadora, prazenteiramente masoquista na
auto-mutilação, tenha vindo a ser notícia, nos últimos tempos, a propósito da
mais recente investida municipal contra o património vegetal, esta posta é
sobre o edificado, a memória histórica e, mais precisamente, sobre o Forte de
Stª Catarina. Muitos já se lhe referiram e eu próprio, não desfazendo, também
já uma vez me debrucei sobre ele neste blogue, mais precisamente a propósito
das obras na sua zona envolvente. É que o velho forte está de novo na
posse dos piratas – ou dos grunhos (no es lo mismo, pero es igual),
senão vejamos:
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O
forte de Stª Catarina integrava, com a fortificação de Buarcos e o Fortim de
Palheiros, o sistema defensivo da enseada que se estendia para norte até ao
cabo Mondego, contra os assaltos de corsários e piratas, frequentes neste
litoral ao tempo dos Filipes. Edificado nessa altura, sobre uns rochedos a que
chamavam Monte de Stª Catarina de Ribamar, foi tomado por Sir Francis
Drake, “el draco” em pessoa, em 1602.
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Em
1643, no contexto das guerras da Restauração, foi reforçada uma das suas
cortinas para comportar quinze peças de artilharia. Mas em 1680 já apresentava
sinais de ruína (..)inspecionado pelo Sargento-mor Jerónimo Velho de Azevedo
que avaliou a reparação em 600.000 reis. Tendo o Conselho da Fazenda mandado
arrematar a obra em hasta pública, não se sabe se chegou a ser feita a
reparação.
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Em
1808 foi de novo tomado, desta vez pelo duque de Abrantes himself
pardon, pelo general Junot lui-même, Junot la tempête em
carne e osso. Retomado pla tropa fandanga do académico Zagalo, foi
entregue ao almirante Charles Cotton que, no comando da esquadra
britânica ao largo da costa portuguesa, pôde dessa forma
assegurar o desembarque seguro de 13.000 homens sob o comando do general Arthur
Wellesley, futuro duque de Wellington, na costa de Lavos.
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Em
1822 está de novo em ruínas, "Precisa-se levantar os 3 merloens da
Bateria, fazerem-se as 8 plataformas da mesma, concertar-se o telhado, paredes,
portas e janellas da caza arruinada proxima ao Forte, e fazerem-se as tarimbas".
dizia então o relatório do Nacional e Real corpo de engenheiros.
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Em
1888 foi instalado um farol de ferro no centro da fortificação, importante
auxílio à navegação na entrada da barra do Mondego, desativado em 1969.
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Em
1911 uma casamata da bateria foi provisoriamente cedida ao Instituto de
Socorro a Náufragos.
Em 1930 parte da esplanada anexa ao forte foi arrendada
à direcção do inenarrável Tennis Club Figueirense (como este,
inexplicavelmente, ainda lá está, presumo que tenha sido arrendado definitivamente).
Entretanto, durante todo o século vinte, foi sendo vítima de todo o tipo de
tropelias e sevícias mais ou menos trepanantes às mãos do inevitável Tennis
Club e de outras entidades ligadas ao turismo e, claro, à animação
de praia.
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Last
but not least, e como não há nada de patético ou grotesco que não lhe
aconteça, foi classificado imóvel de Interesse Público, pelo Decreto n.º
44.075, publicado no Diário do Governo, I Série, n.º 281, de 5 de dezembro de
1961.
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Este
é um monumento mártir, como aliás a santa de quem usa o nome. Só lhe saem duques
e cenas tristes no jogo da História. Sempre que é tomado aos piratas é,
invariavelmente, entregue aos grunhos.
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Sob
a tutela da gloriosa Marinha Lusitana (ou do Ministério da Defesa ou lá o que
é) até há poucos anos, foi finalmente entregue à Câmara Municipal. E os
resultados estão à vista. Se as obras da zona envolvente, em 2013 (às
quais já me referi aqui) foram o que se sabe, o uso que os
grunhos que dirigem o município lhe reservaram indicia que o único interesse
que o público figueirinhas vê num imóvel classificado é o da
venda da cervejola a copo.
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O
Forte está hoje tomado, ou ocupado, por uma bjecaria – um
botequim, uma loja de bjecas gurmê. O logo de uma cervejola, pintado num toldo,
flutua agora, como um pavilhão de piratas, ao lado do velho farol que,
obsoleto, foi transformado num triste e surrealista bibelot decorativo.
A sua capela maneirista foi transformada num alarve armazém de vasilhame
e os seus baluartes e passadiços, pejados agora de ladrilhos vidrados, de
guarda-sóis tropicais e de mobília de jardim, numa nefanda esplanada-de-praia.
Só falta envidraçar todo o conjunto para transformar de vez o velho forte numa marquise,
como todos os outros ícones da restauração figueirinhas (lá
chegaremos, com certeza).
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- É
verdade que o imóvel podia ter sido aproveitado para um museu militar ou de
História, um local de exposições sei lá, um centro de interpretação,
onde se explicasse aos fedelhos e aos pais deles (que também não gostam muito
de ler) a história das devastadoras investidas dos piratas no tempo dos
Filipes, a das guerras da Restauração, a da resistência à ocupação napoleónica,
a do socorro a náufragos e a do auxílio à navegação. Ou a história das centenas
ou milhares de pescadores que o forte viu embarcarem para a Gronelândia ou para
a Terra-Nova e dos que não tornaram a vê-lo porque nunca voltaram desse infame
degredo esclavagista. E, já agora, também se lhes podia explicar quem foram Sir
Francis Drake, o duque de Abrantes e o de Wellington, o almirante Cotton e até
o académico Zagalo.
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Poder, podia. Se o objectivo fosse o conhecimento, e a sua divulgação.
Mas
não era a mesma coisa.
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Porque o verdadeiro objectivo assumido, ainda que
inconfessado, é o entorpecimento, pela animação – o entretenimento,
o mais elementar e redondo utensílio daquilo que eu chamo educação para a
estupidificação.
Afinal
esta é a terra que festeja corsários e piratas (os mesmos que outrora
aterrorizavam os antepassados dos actuais figueirinhas) e até lhes
dedica uma feira temática anual onde, mui pedagogicamente e com o alto
patrocínio da Câmara Municipal, do seu pelouro cultural e da junta de
Freguesia, eles são alegre e amnesicamente apresentados como muito patuscos,
amigáveis e folgazões - exactamente, sem tirar nem pôr, como nos filmes do
Errol Flynn que o presidente da junta via, quando era rapaz novo, no galinheiro
do Parque-Cine, essoutro ícone do esquecimento e da (auto)degradação
figueirense.
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*A
foto que ilustra esta posta foi tirada do exterior porque o “estabelecimento”
estava encerrado. De qualquer modo, o leitor interessado pode sempre
deslocar-se lá para aferir com os próprios olhos o critério de sofisticado
bom-gosto que presidiu à escolha dos novíssimos ladrilhos que “alindam” agora
os pavimentos superiores, bem como dos guarda-sóis, da mobília de jardim e do
bar de praia instalado no baluarte a nascente.
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