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terça-feira, 6 de agosto de 2019

Stª Catarina de Ribamar, os piratas e os grunhos

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Há monumentos ou sítios que se tornam símbolos, ícones, ex-libris de um local ou de uma comunidade. Há outros que, além disso, se tornam também emblemáticos de uma atitude colectiva e de uma prática sistemática, por indiferença ou premeditação. De certa maneira, uma maneira muito enviesada e figueirense, este é o caso do Forte de Stª Catarina de Ribamar da Figueira da Foz.
Em todo o concelho há, infelizmente, mais casos semelhantes (o fortim de Palheiros, a capela de Stª Eulália, o Paço de Maiorca, o convento de Seiça), mas esta fortificação militar é o exemplo acabado e ilustrado deste paradigma genuinamente figueirense. Trata-se de um monumento que representa emblematicamente, como talvez nenhum outro, a indiferença ressentida e rancorosa e o desprezo vingativo que são os ingredientes da atitude, do sentimento, que os figueirenses (as autoridades e os paisanos, de geração em geração) nutrem pelos seus sinais identitários, pelo seu património em espaço público e pela história, a memória, a cultura e a arte em geral (sobre este assunto específico já me permiti algumas copiosas considerações, aqui).
Embora esta sanha vingativa e exterminadora, prazenteiramente masoquista na auto-mutilação, tenha vindo a ser notícia, nos últimos tempos, a propósito da mais recente investida municipal contra o património vegetal, esta posta é sobre o edificado, a memória histórica e, mais precisamente, sobre o Forte de Stª Catarina. Muitos já se lhe referiram e eu próprio, não desfazendo, também já uma vez me debrucei sobre ele neste blogue, mais precisamente a propósito das obras na sua zona envolvente. É que o velho forte está de novo na posse dos piratas – ou dos grunhos (no es lo mismo, pero es igual), senão vejamos:
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O forte de Stª Catarina integrava, com a fortificação de Buarcos e o Fortim de Palheiros, o sistema defensivo da enseada que se estendia para norte até ao cabo Mondego, contra os assaltos de corsários e piratas, frequentes neste litoral ao tempo dos Filipes. Edificado nessa altura, sobre uns rochedos a que chamavam Monte de Stª Catarina de Ribamar, foi tomado por Sir Francis Drake, “el draco” em pessoa, em 1602.
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Em 1643, no contexto das guerras da Restauração, foi reforçada uma das suas cortinas para comportar quinze peças de artilharia. Mas em 1680 já apresentava sinais de ruína (..)inspecionado pelo Sargento-mor Jerónimo Velho de Azevedo que avaliou a reparação em 600.000 reis. Tendo o Conselho da Fazenda mandado arrematar a obra em hasta pública, não se sabe se chegou a ser feita a reparação.
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Em 1808 foi de novo tomado, desta vez pelo duque de Abrantes himself pardon, pelo general Junot lui-même, Junot la tempête em carne e osso. Retomado pla tropa fandanga do académico Zagalo, foi entregue ao almirante Charles Cotton que, no comando da esquadra britânica ao largo da costa portuguesa, pôde dessa forma assegurar o desembarque seguro de 13.000 homens sob o comando do general Arthur Wellesley, futuro duque de Wellington, na costa de Lavos.
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Em 1822 está de novo em ruínas, "Precisa-se levantar os 3 merloens da Bateria, fazerem-se as 8 plataformas da mesma, concertar-se o telhado, paredes, portas e janellas da caza arruinada proxima ao Forte, e fazerem-se as tarimbas". dizia então o relatório do Nacional e Real corpo de engenheiros.
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Em 1888 foi instalado um farol de ferro no centro da fortificação, importante auxílio à navegação na entrada da barra do Mondego, desativado em 1969.
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Em 1911 uma casamata da bateria foi provisoriamente cedida ao Instituto de Socorro a Náufragos. 
Em 1930 parte da esplanada anexa ao forte foi arrendada à direcção do inenarrável Tennis Club Figueirense (como este, inexplicavelmente, ainda lá está, presumo que tenha sido arrendado definitivamente).
Entretanto, durante todo o século vinte, foi sendo vítima de todo o tipo de tropelias e sevícias mais ou menos trepanantes às mãos do inevitável Tennis Club e de outras entidades ligadas ao turismo e, claro, à animação de praia.
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Last but not least, e como não há nada de patético ou grotesco que não lhe aconteça, foi classificado imóvel de Interesse Público, pelo Decreto n.º 44.075, publicado no Diário do Governo, I Série, n.º 281, de 5 de dezembro de 1961.
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Este é um monumento mártir, como aliás a santa de quem usa o nome. Só lhe saem duques e cenas tristes no jogo da História. Sempre que é tomado aos piratas é, invariavelmente, entregue aos grunhos.
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Sob a tutela da gloriosa Marinha Lusitana (ou do Ministério da Defesa ou lá o que é) até há poucos anos, foi finalmente entregue à Câmara Municipal. E os resultados estão à vista. Se as obras da zona envolvente, em 2013 (às quais já me referi aqui) foram o que se sabe, o uso que os grunhos que dirigem o município lhe reservaram indicia que o único interesse que o público figueirinhas vê num imóvel classificado é o da venda da cervejola a copo.
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O Forte está hoje tomado, ou ocupado, por uma bjecaria – um botequim, uma loja de bjecas gurmê. O logo de uma cervejola, pintado num toldo, flutua agora, como um pavilhão de piratas, ao lado do velho farol que, obsoleto, foi transformado num triste e surrealista bibelot decorativo. A sua capela maneirista foi transformada num alarve armazém de vasilhame e os seus baluartes e passadiços, pejados agora de ladrilhos vidrados, de guarda-sóis tropicais e de mobília de jardim, numa nefanda esplanada-de-praia. Só falta envidraçar todo o conjunto para transformar de vez o velho forte numa marquise, como todos os outros ícones da restauração figueirinhas (lá chegaremos, com certeza).
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- É verdade que o imóvel podia ter sido aproveitado para um museu militar ou de História, um local de exposições sei lá, um centro de interpretação, onde se explicasse aos fedelhos e aos pais deles (que também não gostam muito de ler) a história das devastadoras investidas dos piratas no tempo dos Filipes, a das guerras da Restauração, a da resistência à ocupação napoleónica, a do socorro a náufragos e a do auxílio à navegação. Ou a história das centenas ou milhares de pescadores que o forte viu embarcarem para a Gronelândia ou para a Terra-Nova e dos que não tornaram a vê-lo porque nunca voltaram desse infame degredo esclavagista. E, já agora, também se lhes podia explicar quem foram Sir Francis Drake, o duque de Abrantes e o de Wellington, o almirante Cotton e até o académico Zagalo.
- Poder, podia. Se o objectivo fosse o conhecimento, e a sua divulgação.
Mas não era a mesma coisa. 
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Porque o verdadeiro objectivo assumido, ainda que inconfessado, é o entorpecimento, pela animação – o entretenimento, o mais elementar e redondo utensílio daquilo que eu chamo educação para a estupidificação.
Afinal esta é a terra que festeja corsários e piratas (os mesmos que outrora aterrorizavam os antepassados dos actuais figueirinhas) e até lhes dedica uma feira temática anual onde, mui pedagogicamente e com o alto patrocínio da Câmara Municipal, do seu pelouro cultural e da junta de Freguesia, eles são alegre e amnesicamente apresentados como muito patuscos, amigáveis e folgazões - exactamente, sem tirar nem pôr, como nos filmes do Errol Flynn que o presidente da junta via, quando era rapaz novo, no galinheiro do Parque-Cine, essoutro ícone do esquecimento e da (auto)degradação figueirense.
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*A foto que ilustra esta posta foi tirada do exterior porque o “estabelecimento” estava encerrado. De qualquer modo, o leitor interessado pode sempre deslocar-se lá para aferir com os próprios olhos o critério de sofisticado bom-gosto que presidiu à escolha dos novíssimos ladrilhos que “alindam” agora os pavimentos superiores, bem como dos guarda-sóis, da mobília de jardim e do bar de praia instalado no baluarte a nascente.

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