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sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

O cómico da situação (1)


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Sendo o cómico a intuição do absurdo, ele afigura-se-me mais desesperante do que o trágico.
Eugène Ionesco

Um cidadão português que, acabando de assistir a uma infame arbitrariedade policial, teve um desabafo indignado (parece que exclamou qualquer coisa como “bosta de bófia”) logo foi estrafegado (nas redes sociais) por milhares de ululantes boas-almas cujos santos valores patrióticos foram vilmente ultrajados.
Logo-a-seguir, mais de uma dezena de milhar de pessoas assinou uma petição de uma cidadã que se declara «Portuguesa e civilizada» e que não pode permitir que o «tipo de pessoa» a que o Mamadou Ba pertence tenha uma palavra a dizer na gestão do país. Tudo isto acontece no país que não é racista, masele que vá lá prá terra dele. Ora, não querem lá ver o filho-da-puta do… do… do… preto”.
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A verdade é que eu também sou português, como Mamadou Ba. E não preciso de ser negro, como Mamadou, para me indignar com a prepotência e com a injustiça. Por isso compreendo o seu desabafo. Eu penso que violência arbitrária sobre gente já segregada é uma baixeza. Até porque na minha família sempre ouvi dizer que ”polícia é abaixo de cão cinco graus”.
Mas o facto de isto ser aprovado por uma mole humana que se diz “civilizada” e chocada por alguém insultar a santa corporação que o pratica não deixa de ter um certo potencial por assim dizer, cómico.
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É, portanto, no campo aberto do cómico, que estamos. E já que aqui chegámos, resolvi esmiuçar, não o humor dos portugueses, que sei que é melancólico e ressabiado, mas o dos humoristas de que eles se riem. Os profissionais. Aqueles a quem os portugueses pagam para que lhes suscitem o riso. E seleccionei dois que devem ser os mais unânimes e requisitados pois são autênticas vedetas, verdadeiras instituições no seu género, ou ramo: Ricardo Araújo Pereira, no humor televisivo e Luís Afonso, no humor gráfico (mas este fica para outra posta, que bem o merece).
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Esmiucemos então Ricardo Araújo Pereira. 
Embora seja um fenómeno televisivo, Ricardo está por todo o lado (tal como o Afonso, aliás): na televisão, na rádio, nos jornais, na publicidade. O rapaz é um deus, omnipresente. É bem-parecido diga-se, e tem uma cultura geral bem acima da média, reconheça-se também. Teve uma educação religiosa, em colégios exclusivos, onde viu a luz e se fez ateu. Hoje é perfeitamente de esquerda (vota no Livre, que é de um rapaz lá amigo dele); o que não o impede, contudo, de sujeitar as filhas a frequentar também muito exclusivos colégios. Confusos?
É a estas extravagâncias de dândi que os tugas acham um piadão (mais as tugas, de meia idade - eu já referi que ele era bem parecido?). Ah, também é um assumido benfiquista, o que o identifica à partida, com a imensa maioria da “moldura humana” que assiste às suas performances, desde logo muito mais predisposta à condescendência.
Ricardo também alimenta uma espécie de ódio d’estimação pelo seu homónimo Salgado porque, ao que sei - e só o sei por ele próprio, nos programas de entretenimento em que participa (eu não leio revistas de celebridades) – a conselho de Cavaco, Ricardo terá confiado no BES e Salgado ter-lhe-á dado sumiço ao pecúlio de poupanças zelosamente ganho a fazer rir os portugueses.
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Mas de que se riem os portugueses?, perguntais vós.
 - Não de si próprios, claro, isso nunca (os tugas têm a auto-estima em alta estima). Nem dos milagres de Fátima, nem dos aventalinhos da maçonaria, nem dos látegos da opus dei; nem dos consórcios de advogados; nem dos pareceres dos catedráticos de coimbrameudeus; nem sequer do empreendedorismo, da caridadezinha, das imagens de marca e da cultura gurmê, muito menos do racismo larvar, da polícia, do exército ou dos tribunais (os portugueses têm também muito alta estima plo respeitinho).
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Então, perguntais vós, de quê ou de quem é que Ricardo Araújo Pereira faz rir os portugueses, porra?
- Pois eu digo-vos: de tudo o resto.
Ricardo Araújo Pereira, no seu mais recente programa televisivo, um suplemento humorístico do noticiário da noite dominical da TVi (digam lá que as piadas não se fazem sozinhas) faz o que, na opinião de gente que eu considero, é “humor inteligente e com qualidade” e “sem medo de afrontar os instalados do regime. Da esquerda à direita do espectro político nacional, varreu tudo e todos”.
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E quem são os instalados do regime que Ricardo supostamente “varreu”?
- Pois bem, são os que erram (Bernardino Soares), os vencidos (Luís Montenegro), os falhados (Rui Rio), os que caem (o já condenado Armando Vara). Porque é disso que o povo gosta. De ver escarnecer os infelizes, de ver bater em mortos. É isso, e apenas isso, que realmente faz rir os portugueses. E é assim que Ricardo alcança a sua imensa popularidade. Sem jamais arriscar a mais leve dissonância ao ululante e inflexível senso comum das maiorias.
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É por isso que estou convencido de que ele é um verdadeiro, um autêntico, cómico da situação.
O que não estou certo é se ele já se apercebeu do absurdo da coisa – enfim, se captou totalmente a piada, ou seja, se intuiu todo o potencial realmente desesperante, ou desanimador, da comicidade de tal situação. Receio que não.
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