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Sendo
o cómico a intuição do absurdo, ele afigura-se-me mais desesperante do que o
trágico.
Eugène Ionesco
Um cidadão português que,
acabando de assistir a uma infame arbitrariedade policial, teve um desabafo
indignado (parece que exclamou qualquer coisa como “bosta de bófia”) logo foi
estrafegado (nas redes sociais) por milhares de ululantes boas-almas cujos
santos valores patrióticos foram vilmente ultrajados.
Logo-a-seguir, mais de
uma dezena de milhar de pessoas assinou uma petição de uma cidadã que se
declara «Portuguesa e civilizada» e que não pode permitir que o «tipo de
pessoa» a que o Mamadou Ba pertence tenha uma palavra a dizer na gestão do
país. Tudo isto acontece no país que não
é racista, mas “ele que vá lá prá
terra dele. Ora, não querem lá ver o filho-da-puta do… do… do… preto”.
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A verdade é que eu também
sou português, como Mamadou Ba. E não preciso de ser negro, como Mamadou,
para me indignar com a prepotência e com a injustiça. Por isso compreendo o seu
desabafo. Eu penso que violência arbitrária sobre gente já segregada é uma baixeza.
Até porque na minha família sempre ouvi dizer que ”polícia é abaixo de cão cinco graus”.
Mas o facto de isto ser
aprovado por uma mole humana que se diz “civilizada” e chocada por alguém
insultar a santa corporação que o pratica não deixa de ter um certo potencial
por assim dizer, cómico.
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É, portanto, no campo aberto do cómico, que estamos. E já
que aqui chegámos, resolvi esmiuçar, não o humor dos portugueses, que sei que é
melancólico e ressabiado, mas o dos humoristas de que eles se riem. Os profissionais.
Aqueles a quem os portugueses pagam para que lhes suscitem o riso. E seleccionei
dois que devem ser os mais unânimes e requisitados pois são autênticas vedetas, verdadeiras instituições no seu
género, ou ramo: Ricardo Araújo Pereira, no humor televisivo e Luís Afonso, no
humor gráfico (mas este fica para outra posta, que bem o merece).
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Esmiucemos então Ricardo Araújo Pereira.
Embora seja um
fenómeno televisivo, Ricardo está por todo o lado (tal como o Afonso, aliás): na
televisão, na rádio, nos jornais, na publicidade. O rapaz é um deus,
omnipresente. É bem-parecido diga-se, e tem uma cultura geral bem acima da
média, reconheça-se também. Teve uma educação religiosa, em colégios
exclusivos, onde viu a luz e se fez
ateu. Hoje é perfeitamente de esquerda
(vota no Livre, que é de um rapaz lá amigo dele); o que não o impede, contudo, de
sujeitar as filhas a frequentar também muito exclusivos colégios. Confusos?
É a estas extravagâncias de dândi que os tugas acham um
piadão (mais as tugas, de meia idade
- eu já referi que ele era bem parecido?). Ah, também é um assumido benfiquista, o que o identifica à
partida, com a imensa maioria da “moldura humana” que assiste às suas performances, desde logo muito mais predisposta à
condescendência.
Ricardo também alimenta uma espécie de ódio d’estimação pelo
seu homónimo Salgado porque, ao que sei - e só o sei por ele próprio, nos
programas de entretenimento em que participa (eu não leio revistas de
celebridades) – a conselho de Cavaco, Ricardo terá confiado no BES e Salgado ter-lhe-á
dado sumiço ao pecúlio de poupanças zelosamente ganho a fazer rir os
portugueses.
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Mas de que se riem os portugueses?, perguntais vós.
- Não de si próprios,
claro, isso nunca (os tugas têm a auto-estima em alta estima). Nem dos
milagres de Fátima, nem dos aventalinhos da maçonaria, nem dos látegos da opus dei; nem dos consórcios
de advogados; nem dos pareceres dos catedráticos de coimbrameudeus; nem sequer do empreendedorismo, da caridadezinha, das imagens de marca e da cultura gurmê, muito menos
do racismo larvar, da polícia, do exército ou dos tribunais (os
portugueses têm também muito alta estima plo respeitinho).
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Então,
perguntais vós, de quê ou de quem é que Ricardo Araújo Pereira faz rir os
portugueses, porra?
- Pois eu digo-vos: de tudo o resto.
Ricardo Araújo Pereira, no seu mais recente programa televisivo,
um suplemento humorístico do noticiário
da noite dominical da TVi (digam lá que as piadas não se fazem sozinhas) faz o que,
na opinião de gente que eu considero, é “humor inteligente e com qualidade” e “sem
medo de afrontar os instalados do regime. Da esquerda à direita do espectro
político nacional, varreu tudo e todos”.
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E quem são os instalados
do regime que Ricardo supostamente “varreu”?
- Pois bem, são os que erram (Bernardino Soares), os
vencidos (Luís Montenegro), os falhados (Rui Rio), os que caem (o já condenado Armando
Vara). Porque é disso que o povo gosta. De ver escarnecer os infelizes, de ver bater
em mortos. É isso, e apenas isso, que realmente faz rir os portugueses. E é
assim que Ricardo alcança a sua imensa popularidade. Sem jamais arriscar a mais
leve dissonância ao ululante e inflexível senso comum das maiorias.
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É por isso que estou convencido de que ele é um verdadeiro,
um autêntico, cómico da situação.
O que não estou certo é se ele já se apercebeu do absurdo
da coisa – enfim, se captou totalmente a piada, ou seja, se intuiu todo o
potencial realmente desesperante, ou desanimador,
da comicidade de tal situação. Receio
que não.
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