A guerra-civil figueirinhas

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Num momento em que tudo se desmorona, pode parecer bizantino falar de cultura. 

Mas quando se discute o importantíssimo assunto da anexação das freguesias e outras frioleiras do mesmo jaez que por sua vez dão origem a ainda mais sórdidos acordos e cambalachos politiqueiros, apraz-me citar o meu amigo Agostinho para concordar com ele: a indigência moral dos portugueses é um problema de raiz eminentemente cultural. Só pode.

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Na Figueira da Foz, por exemplo, acontecem coisas inauditas e pífias que o demonstram à saciedade. A cidade, aliás, é uma espécie de Entroncamento cultural com vista de mar: um fenómeno que atrai e irradia, uma imensa Meca da cultura. É uma coisa impressionante, congrega mais artistas-plásticos por metro quadrado do que Nova-Iorque (sem falar em poetas, bailarinos, actores, cineastas e outros criadores-multi-média) e acaba de organizar, com o alto-patrocínio do poder autárquico, what else? - um encontro de criadores: uma coisa que dá pelo nome de Criativa 2012. Nem mais.

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A cinco de Outubro, o presidente da Câmara da Figueira inaugurou no Museu Municipal, no CAE e nas sedes das inúmeras associações que representam este infindável número de criadores, penso que com pompa e alguma circunstância, uma série simultânea de exposições de variedades - um verdadeiro festival DOC (com denominação de origem controlada) tão abrangente de mediocridades do terroir local que tanto engloba algumas ainda muito juvenis como outras já em plena maturidade.

A coisa integrou claro, como é suposto que manda o figurino, palestras com debates e másterclasses, mas também uórquexópes com cófibreiques e o caralho. Tudo devidamente enquadrado numa estratégia que, gizada pelo vereador Tavares, configura uma espécie de ofensiva cultural do poder autárquico sucialista contra a, digamos assim, “política do espírito” do inefável dótordomingoxilva, aparentemente o patrocinador do inevitável Miguel Almeida, désormais o futuro candidato a presidente da Câmara (!!!) plo pêpêdê.

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Ao contrário da “política do espírito” da Sociedade Figueira-Praia, que “pesca” pelas aldeias, em colectividades recreativas (fiel a uma concepção de cultura que não reconhece outro sentido ou fim último para esta que não o do entretenimento, a animação), a do município tenta cooptar unicamente as almas figueirinhas oriundas do meio urbano: classe média alta, ou baixa mas sem grande consciência política - acham por exemplo - não têm bem a certeza, que Karl Marx era um galã do preto-e-branco e que Pinochet é uma espécie de cocktail de esplanada, um traçadinho para gajas; têm porém consciência ecológica aguda: são contra as touradas e outras distracções populares que acham sei lá um pouco foleiras ou tipo assim lá-fora-estas-merdas-não-se-usam não sei se tás a ver iúnou; sabem ler jornais mas não praticam demasiado – são cosmopolitas, lêem sobretudo revistas estrangeiras - exprimem-se aliás com tal fluência na língua do Batman que a usam com naturalidade para dar nomes patuscos repletos de enigmáticos ovos da páscoa e piscares d’olhos entendidos às suas vãs tentativas ou esbocetos (ups, devo escrever sketches?).

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O pathos figueirense está pois polarizado entre dois modos irremediavelmente antagonistas de encarar a cultura: um, encarnado por António Tavares, o vereador da cultura, que a entende como uma atitude, um spleen, uma pose ainda que pragmática, que não enjeita um piscardolho ao outro modo, encarnado por Miguel Almeida, para quem a cultura não vai além do bailinho prapular.

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Duas mundivisões irreconciliáveis numa inefável guerra-civil surda e não declarada, tipicamente figueirinhas, entre alecrins gandareses e urbanas manjeronas. Ou vice-versa.

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Devo dizer que a minha posição relativa a estas duas “mundivisões” é equidistante, e não me importo de repeti-la: talvez devido à minha assumida misantropia, sempre me foi fácil manter uma distância sanitária entre mim e uma vasta gama de cretinos, à esquerda e à direita. É evidente que com custos óbvios. Mas ninguém tem nada a ver com isso.

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Não obstante, nesta guerra civil não sou imparcial. 

Sou um franco-atirador. Quem se puser ao alcance da minha mira, marcha.

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