.
.
As favas que semeei em Dezembro estão agora, finalmente, a
contribuir (com as chuvas de Abril) para o desagravo dos meus humores - estes retribuem
com breves cantatas, eloquentes e agradecidas - digamos que a minha recente opção estratégica pelos grandes espaços abertos, referida no último
post, se revelou muito judiciosa e
justificada.
.
A verdade porém é que a actividade de plein air aqui por casa não é só por
causa das favas. Também há uma pequena horta, um bom punhado de árvores de
fruto e, desde o ano passado - com o desvelo e entusiasmo permitidos pela minha
vasta ignorância na matéria – groselhas, framboesas, mirtilos e até bagas goji. Contudo, isto de fruta biológica
não é só flores; também tem espinhos. No caso dos frutos vermelhos, são os pardais.
.
-Os pardais são uns cabrõezinhos alados e anarquistas que
formam bandos vorazes de autênticas aves de rapina gourmet. Foram estes pentelhos trocistas que me levaram à construção de um espantalho.
-O espantalho é, no entanto, desde o início dos tempos
(isto é, desde os alvores da agricultura) uma ambiguidade; um grito mudo; uma
ameaça incompetente; um gesto pífio, uma bravata. Ou seja, um logro filosófico,
uma santa ingenuidade.
.
O meu espantalho, que também não é isento de ambiguidades,
não é contudo um espantalho qualquer. É a representação de um espantalho; uma experiência
estética e lúdica delirante. Ou seja, o meu espantalho é uma estátua; uma
escultura.
Concebi-o com uma técnica que já expliquei aqui: o corpo com uns ferros retorcidos;
a cabeça com duas pedras - uma redonda e bojuda, dentro de uma caixa quadrada
de ferro de fundição e uma chata e oblonga por cima, à guisa de chapéu - e os
pés numa única sapata, de betão, que é o pódio que o eleva; isto é, o pedestal.
Tudo preso por arames.
.
Chamei-lhe Reboredo, numa alusão óbvia a Mário Henrique
Leiria, em cujas estórias há sempre um Reboredo e onde o não-sentido das coisas
está sempre mais ou menos explícito.
- O meu espantalho é pois um monumento àquela espécie de
inutilidade pretensiosa que tanto satisfaz o sentido de non-sense das crianças
de todas as idades. Passa a vida naquela incansável e imprestável abstenção violenta que tanto tranquiliza
os meus pruridos ambientalistas como os outros passarinhos, os pardais; estes estão, aliás, para o espantalho Reboredo como os cubanos para a grande águia
americana: no le tienen absolutamente
nengún miedo. Acho até que se divertem. Reboredo
it’s for fun.
,
Como objecto
estético, no entanto, Reboredo não é de todo inóquo: faz-me lembrar os manequins
de di Chirico. Tal como eles nas praças de Itália, Reboredo no meu jardim também
me parece um tanto deslocado e absurdo ou premonitório.
.
Todavia, se como objecto
funcional ele é de uma inépcia já provada, pode ser que ainda tenha alguma utilidade
como objecto político: podia sei lá,
por exemplo, servir para épater les
bourgeois; o problema é que poucos já passam ao meu portão.
Quem passa é cada vez
mais da middle class ou mesmo do lumpenproletariat; de cabeça baixa e
olhos no valado, à cata de outro pesadelo dos hortelões - os caracóis –essoutro
petisco gourmet.
.
1 comentário:
Sabe bem chegar ao fim de um texto com um sorriso sacaninha.Quanto à escultura não a vou encomendar para o meu quintal não me vá cair na mona.
Enviar um comentário