.

terça-feira, 24 de abril de 2012

O espantalho

.
.


As favas que semeei em Dezembro estão agora, finalmente, a contribuir (com as chuvas de Abril) para o desagravo dos meus humores - estes retribuem com breves cantatas, eloquentes e agradecidas - digamos que a minha recente opção estratégica pelos grandes espaços abertos, referida no último post, se revelou muito judiciosa e justificada.
.
A verdade porém é que a actividade de plein air aqui por casa não é só por causa das favas. Também há uma pequena horta, um bom punhado de árvores de fruto e, desde o ano passado - com o desvelo e entusiasmo permitidos pela minha vasta ignorância na matéria – groselhas, framboesas, mirtilos e até bagas goji. Contudo, isto de fruta biológica não é só flores; também tem espinhos. No caso dos frutos vermelhos, são os pardais.
.
-Os pardais são uns cabrõezinhos alados e anarquistas que formam bandos vorazes de autênticas aves de rapina gourmet. Foram estes pentelhos trocistas que me levaram à construção de um espantalho.
-O espantalho é, no entanto, desde o início dos tempos (isto é, desde os alvores da agricultura) uma ambiguidade; um grito mudo; uma ameaça incompetente; um gesto pífio, uma bravata. Ou seja, um logro filosófico, uma santa ingenuidade.
.
O meu espantalho, que também não é isento de ambiguidades, não é contudo um espantalho qualquer. É a representação de um espantalho; uma experiência estética e lúdica delirante. Ou seja, o meu espantalho é uma estátua; uma escultura.
Concebi-o com uma técnica que já expliquei aqui: o corpo com uns ferros retorcidos; a cabeça com duas pedras - uma redonda e bojuda, dentro de uma caixa quadrada de ferro de fundição e uma chata e oblonga por cima, à guisa de chapéu - e os pés numa única sapata, de betão, que é o pódio que o eleva; isto é, o pedestal. Tudo preso por arames.
.
Chamei-lhe Reboredo, numa alusão óbvia a Mário Henrique Leiria, em cujas estórias há sempre um Reboredo e onde o não-sentido das coisas está sempre mais ou menos explícito.
- O meu espantalho é pois um monumento àquela espécie de inutilidade pretensiosa que tanto satisfaz o sentido de non-sense das crianças de todas as idades. Passa a vida naquela incansável e imprestável abstenção violenta que tanto tranquiliza os meus pruridos ambientalistas como os outros passarinhos, os pardais; estes estão, aliás, para o espantalho Reboredo como os cubanos para a grande águia americana: no le tienen absolutamente nengún miedo. Acho até que se divertem. Reboredo it’s for fun.
,
Como objecto estético, no entanto, Reboredo não é de todo inóquo: faz-me lembrar os manequins de di Chirico. Tal como eles nas praças de Itália, Reboredo no meu jardim também me parece um tanto deslocado e absurdo ou premonitório.
.
Todavia, se como objecto funcional ele é de uma inépcia já provada, pode ser que ainda tenha alguma utilidade como objecto político: podia sei lá, por exemplo, servir para épater les bourgeois; o problema é que poucos já passam ao meu portão.

Quem passa é cada vez mais da middle class ou mesmo do lumpenproletariat; de cabeça baixa e olhos no valado, à cata de outro pesadelo dos hortelões - os caracóis –essoutro petisco gourmet.

.

1 comentário:

cid simoes disse...

Sabe bem chegar ao fim de um texto com um sorriso sacaninha.Quanto à escultura não a vou encomendar para o meu quintal não me vá cair na mona.