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segunda-feira, 23 de agosto de 2010

A arte pacheca

Existe, entre alguns “pensadores” liberais, a crença mais ou menos enraizada de que “cultura subsidiada é cultura controlada”. Eles não gostam de nada controlado. A não ser que seja pelo mercado.
Eles também acreditam (é sabido que a ideologia é mais do domínio da fé e da convicção do que da reflexão ou do raciocínio) que a cultura é uma “manifestação espontânea e que assim forma sua própria demanda por um determinado produto ou estilo”; por isso são firmemente contra os subsídios à cultura; ou seja, acreditam devotamente nas leis do mercado. Vejam como este curioso argumentário não é exclusivo dos nossos pachecos-pereiras, sousa-tavares ou césares-das-neves - já se estendeu ao outro lado do Atlântico e por lá também tem cultores com apelidos com tanto ou mais pedigree: “Se a maioria das pessoas não liga para literatura, para cinema e para artes em geral, não há sentido forçá-las a pagar por isso. Tornar compulsório o financiamento de manifestações artísticas é desrespeitar o gosto pessoal do contribuinte; faz com que lhe seja retirado o direito de pagar somente pela arte que lhe aprouver. É infantilizá-lo. Se ninguém, por exemplo, quiser saber de teatro de rua, a única solução minimamente sensata é deixá-lo definhar. Não há motivos para forçar o consumo. Quem se interessar, que vá atrás.
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Em Portugal, José Pacheco Pereira é o paladino destes liberalíssimos “neo-cons” no combate pelo direito à escolha dos contribuintes e contra o controlo do pensamento dos pobrezinhos pelo Estado. Os seus argumentos radicalizaram-se recentemente, a propósito do Ministério da Cultura ter voltado atrás na intenção de cortar os subsídios à sua numerosa e reivindicativa prole de cortesãos.
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Dito isto, é verdade que no Ministério da Cultura persiste a tradição iníqua de autênticas nódoas chupadeiras serem continuada e impunemente manteúdas pelo erário público -fenómeno igualmente observável no ministério da Agricultura e Pescas, no da indústria, no do Comércio, no da Segurança Social and so on, mas que já não escandaliza tanto estes liberais que, nos jornais e nas universidades, vão doutrinando as jovens gerações na religião do santo mercado enquanto vão auferindo chorudas reformas por meia dúzia de anos de serviços prestados ao Estado - o que configura aliás outra especificidade cultural indígena, um traço identitário nacional que explica eloquentemente o nosso atraso.
.– E contudo também é verdade que eu não conheço, em toda a civilização ocidental, grande Arte que não tenha sido subsidiada (com a possível excepção do Século de Ouro Holandês): das pirâmides do Egipto ao palácio de Dario, do Partenon à Capela Sistina, de Velásquez a Molière, de Shakespeare a Richard Wagner e a Brasília. *É evidente que a “independência” dos artistas que criaram tudo isto é bem capaz de ter sido discutível, mas o facto é que já nem sequer sabemos em que acreditavam (nem sei se seria recomendável) Ramsés II, Dario, Péricles, os Bórgias e Júlio II, Filipe IV, Luís XIV, Isabel I, Luís II da Baviera ou Juscelino Kubitchek. Apenas a Arte subsistiu; e muito do sabemos de alguns deles resume-se ao que sobrou da Arte que eles tornaram possível.
Eu tremo só de pensar no que seria o legado artístico da civilização ocidental se esta maltosa tem confiado no “gosto pessoal dos contribuintes”, mas reconheço que isto seja “intangível” para Pacheco e os seus prosélitos d’aquém e d’além mar.
.Algo “tangível” para Pacheco descobri eu na Net.
Algo completamente diferente.
Trata-se de uma arte sancionada pelo mercado e pelo “gosto dos contribuintes”.
A esta arte nenhum estado ousaria jamais subsidiar um museu. E contudo ele existe. De iniciativa privada, claro. Onde? – Na pátria que pariu fascinantes conceitos cada vez mais globalizados tais como o fast-food, o top-mais, o best-seller, o take away e o block-buster e que é a medida de todas as coisas para todos os pachecos deste mundo.
Esta arte existe por todo o lado e em todo lado tem mercado.
Mas só na América alguém se lembraria de lhe consagrar um museu.
Um museu à medida do Pacheco.
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.*afirmo-o com o à vontade de um out-sider, isto é, de alguém que está fora do sistema; alguém que nunca pediu nem recebeu subsídio, ajuda de custo, prebenda ou mordomia; do Estado, de qualquer dos seus múltiplos institutos ou Fundações ou sequer da sua Junta de Freguesia.
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2 comentários:

Fernando Ribeiro disse...

Aqui há mais links para diversos "museus" e "galerias" do mesmo género. Como se vê, a arte pacheca tem mercado...

A caricatura de Pacheco Pereira fica-lhe (a ele) a matar. Parabéns pela inspiração.

Rogério G.V. Pereira disse...

Cheguei aqui
Aqui hei-de voltar
Sempre que a inspiração
Me trair e faltar

(Hoje descobri que comigo pode emparceirar no meu "no Ars Gratia Artis"...