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INSTRUÇÕES PARA DAR CORDA AO RELÓGIO
Lá bem no fundo está a morte, mas não tenha medo.
Segure o relógio com uma mão, com dois dedos na roda da corda, suavemente
faça-a rodar. Um outro tempo começa, perdem as árvores as folhas, os barcos
voam, como um leque enche-se o tempo de si mesmo, dele brotam o ar, a brisa da
terra, a sombra de uma mulher, o perfume do pão.
Quer mais alguma coisa? Aperte-o ao pulso, deixe-o correr em liberdade, imite-o
sôfrego. O medo enferruja as rodas, tudo o que se poderia alcançar e foi
esquecido vai corroer as veias do relógio, gangrenando o frio sangue dos seus
pequenos rubis. E lá bem no fundo está a morte se não corrermos e chegarmos
antes para compreender que já não interessa nada.
Ontém fiz sessenta anos. Já vou mijando às pinguinhas, ouço
mal, dói-me quase tudo. Vai-se andando. Como a conta
era redonda, cá em casa acharam justificadas festividades e
libações. De maneiras que hoje não me apetece fazer um corno, nem desenhos nem
textos para os ilustrar.
Por isso, em lugar de mais um dos meus humildes originais,
hoje decidi partilhar duas obras-primas absolutas e incontestáveis. Pedi
emprestado um texto a Júlio Cortázar (que também nasceu no dia de ontem) e o
desenho a José Guadalupe Posada (a primeira impressão da gravura “la
calavera de D. Quixote perseguindo os esqueletos dos anões”) do qual,
há anos, me permiti “roubar” o motivo do cabeçalho deste blogue.
No mais, vou continuar a fazer - com as minhas
tamanquinhas, como sempre - um pouco mais ou menos o mesmo que até aqui: a
investir, de lança em riste e à desfilada, como o quixote de Posada, sobre toda
a casta de chiquinhos-espertos, de gigantones imbecis e de anõezinhos lambe-cus
desta vida. Compreendo que, lá bem no fundo, já não interessa
nada. Espero apenas divertir-me ainda tudo quanto possa.
4 comentários:
Que saudades... há 32 anos a 23 de agosto aconteceu-me o mesmo. É a idade em que há o maior equilíbrio entre conhecimento e capacidade de execução. Não tenho medo de bater a bota, tenho é pena de não continuar como actor deste filme. SAÚDE!
"Espero apenas divertir-me ainda tudo quanto possa."
e cá estou eu, espectador-leitor-fiel e atento
a colher beneficio desse teu divertimento
Força
E eu espero poder manter por mais algum tempo esta minha imensa paixão pela vida...
Abraço!
Meu caro Fernando
Por cá já cantam mais seis e espero divertir-me com os teus desenhos e as tuas tiradas irónicas e acutilantes.
Um abraço
Xavier Longo
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