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quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Nos cem anos do Zé

No passado dia 15 José Penicheiro teria celebrado cem anos. Os serviços culturais da Câmara Municipal da Figueira da Foz assinalam a efeméride (ou a oportunidade, ou lá o que é) com duas exposições no CAE que, confesso, ainda não visitei.

Se há vantagem em morar longe é que sempre se poupa algumas decepções.                                                    Porque se este tributo for o reflexo do press-release mil vezes repetido por todos os órgãos de informação, receio que a homenagem seja, como de costume, a meia dúzia de lugares-comuns mil vezes repetidos, mais umas quantas banalidades e a exposição de outras tantas peças sem critério nem contextualização – o serviço mínimo habitual nuns serviços culturais que se auto-justificam numa rotina da celebração de oportunidades (ou de efemérides, ou lá o que é).

A verdade, porém, é que o centenário do nascimento de José Penicheiro seria de facto uma oportunidade ideal para uns serviços culturais que tutelam um museu municipal  com responsabilidade e verdadeira vocação pedagógica organizarem “a grande exposição” que pudesse ilustrar o xelentíssimo publico-zinho, mas também as novas gerações, sobre o contexto e circunstâncias  da sua formação, influências, maturidade e sobretudo sobre a dimensão exacta da grandeza, sempre ferozmente independente de qualquer academia, de uma das obras criativas mais originais e fecundas produzidas por um artista que não trouxe a glória de fora (do estrangeiro e das grandes capitais) porque soube sempre merecê-la entre nós, onde viveu toda a vida.

Aquando da sua morte, em 2014, dediquei-lhe uma posta, com caricatura e tudo e até um linguado, que reproduzo ipsis verbis.

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Louvor e simplificação de José penicheiro

Todos os quadros têm teias de aranha no cu
Marcel Duchamp

Nos anos oitenta do século passado, o chuveirinho de fundos perdidos proveniente da então CEE achou em Portugal solo fértil para o milagre económico e sociológico do novo-riquismo, que ficou popularmente conhecido por “cavaquismo”. Mas também acabou por proporcionar um outro fenómeno sociológico, e económico, inaudito na história de Portugal: a eclosão de um mercado de arte na província.
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É verdade. De repente, num país atrasado e atavicamente pouco dado a coisas do espírito - acabadinho de sair de uma ditadura de quatro décadas, de um pequeno sobressalto “revolucionário” e de duas intervenções assistenciais do FMI - pessoas acabadas de ascender a uma próspera e inesperada classe média-alta descobriram em si um ideal abstracto e, num inusitado interesse plo espírito das coisas, o amor acrisolado pela arte. Foi assim que médicos, engenheiros, advogados, magistrados, altos funcionários e pequenos empresários com poder aquisitivo e alma de connoisseurs, de coleccioneurs ou de investideurs criaram as condições para que um pequeno núcleo de artistas, alguns já activos desde os anos 40 e 50, se pudesse dedicar à arte a tempo inteiro. Foi o caso de José Penicheiro.
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O poder autárquico, pla aquisição de obras e encomendas de arte pública, também deu um valioso contributo para a consagração destes petits maitres regionais; assim como o Serviço Nacional de Saúde que, com o seu generoso patrocínio das multinacionais do medicamento, permitiu a impressão mecenática de sucessivas e copiosas edições limitadas de serigrafias e litografias cujos exemplares, assinados e numerados pelos artistas, reproduziam originais e eram distribuídas, como oferendas, em alegres congressos médicos pla província - num contributo precioso, e definitivo, para a divulgação das suas obras e para a sua imensa popularidade.
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Na Figueira, por exemplo, não há casa nem casebre que não possua as paredes engalanadas com uma destas (já desbotadas, no caso das litografias) reproduções. O povo tinha mesmo os seus artistas preferidos. Contudo, nunca houve unanimidade. A admiração popular, tal como no futebol, ainda hoje se divide plos três grandes: Cunha Rocha, Mário Silva e José Penicheiro.
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E contudo, dos “três grandes”, Penicheiro era o artista menos óbvio para agradar ao novo gosto dos novos burgueses emergentes - o seu trabalho era prejudicado pela má qualidade dos suportes (cartão ou platex) e dos materiais (o guache e a tinta plástica) e o seu imaginário, enraizado ainda em modelos neo-realistas, era povoado de gente humilde e anónima numa paisagem ribeirinha sempre ligada ao universo do trabalho árduo e penoso: no salgado, na pesca, na lota, em andaimes e estaleiros - os novos-ricos, mesmo de origem humilde, não gostam que lho recordem. Também desprezam o trabalho duro, que acham desqualificado, e desconfiam da arte que o representa: invariavelmente acham-na subversiva ou, no mínimo, inconveniente. 
Mas foi isso mesmo que Penicheiro fez: encheu-lhes as paredes das vivendas e dos palacetes de trolhas e marnotos, costureiras, pescadores, moliceiros, lavadeiras e cavadores.
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A grande arte de Zé Penicheiro
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Filho de um carpinteiro, Zé Penicheiro começou pela caricatura em madeira. Bonecos em volume, como ele dizia. Auto-didacta orgulhoso (quase até à arrogância) aprendeu o desenho e aprimorou o traço na tarimba do humor gráfico e da caricatura de imprensa, nos anos de chumbo da censura. Desenhador compulsivo, o seu traço vigoroso, sintético e eloquente era alicerçado num sentido da composição rigoroso, numa sensibilidade de colorista requintado – adquiridos ao longo de muitos anos de trabalho na publicidade e na decoração – e num instinto ornamental que se foi tornando cada vez mais sofisticado e exuberante.
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Quando o conheci, em 1981, trabalhei com ele em publicidade. Aprendi imenso (a relevância do seu contributo para a linguagem desta arte de comunicação dava para escrever um tratado, um capítulo à parte na sua vasta obra criativa (só semelhante ao de outro figueirense, Cândido Costa Pinto. Este até com obra teórica publicada sobre o assunto, embora nunca tenha exercido actividade na região). Mas em 84 (ou 85), quando trabalhei para ele - na impressão serigráfica dos seus trabalhos – já ele se dedicava finalmente, em exclusivo, à sua paixão de toda a vida, a pintura. Tinha mais de sessenta anos.
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Numa idade em que a maior parte dos homens calça as pantufas e se senta ao borralho a olhar para ontem, Penicheiro preparava-se para começar outra vida. Criativa. E para consumar a sua obra – uma obra que teria, contudo, um carácter sempre reminiscente, também a olhar para ontem, numa espécie de interminável “Amarcord”. 
Todavia, ao contrário de Fellini, não existe em Penicheiro o conflito, o pormenor, o improviso, a blasfémia, o humor (ou o sarcasmo), a revolta, a gargalhada, a obscenidade, a subversão, o grito. 
Não há rostos, nem olhares, nem expressões na sua obra. Nem se vêem das mãos as linhas da vida, ou as unhas negras e as calosidades. Apenas vultos. Os homens, de chapéu; as mulheres, de lenço na cabeça, sempre curvada. Tudo sob um manto intrincado de manchas opacas, numa densa bruma esquartejada de harmoniosas decomposições tonais atenuadas. E uma indelével impressão de nostálgica e solene mansidão resignada. 
Penicheiro não pinta o que vê, pinta o que viu. Ou melhor, a impressão com que ficou.
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Foi esta visão sentimental, silenciosa e velada pela distância do tempo que talvez tenha tranquilizado os novos (e até os velhos) burgueses. A-do-ra-ram. Penicheiro tornou-se mesmo o artista mais premiado e homenageado  pelos “clubes de serviço”.  Arrematavam tudo, em alegres e selectas jantaradas. À peça ou à molhada. 
A consagração popular veio depois, naturalmente. O povo, como é sabido, aplaude sempre os vencedores.
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Porém, a coroa de glória de Zé Penicheiro, a verdadeira consagração, surgiu já quase no fim da sua vida (e carreira, que os artistas trabalham sempre até ao fim), em 2004: a encomenda de um mural monumental pela Universidade de Aveiro, para comemoração dos seus trinta anos.
Nada mal. Para um homem que se tinha feito a si próprio, que se gabava de nunca ter ido à escola e de toda-a-vida ter nutrido um sincero desprezo pelo conhecimento académico.
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