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quinta-feira, 23 de setembro de 2021

O walesa do cais da figueira ou a parábola da idiotia útil


Manuel Gonçalves é estivador e sindicalista. É presidente do SINPORFOZ, o sindicato dos trabalhadores portuários da Figueira da Foz. Gonçalves nunca deu entrevistas ao “Económico” como o Walesa da Moita, mas ainda pode vir a dar, sei lá, ao boletim da CIP, ou à revista Caras. Sim, porque Manuel Gonçalves já fez tudo para merecer pelo menos uma menção honrosa no boletim daquela confederação de empresários ou uma referência, ainda que de pé-de-página, na publicação portuguesa que dedica mais atenção ao laife-setaile dos famosos e à carreira plítica de outro dos protagonistas da estória que se segue.

“Hoje, Pedro Santana Lopes, Paulo Mariano e uma Comitiva de candidatos do Movimento Figueira a Primeira visitaram o Porto da Figueira da Foz mais concretamente a Operfoz para auscultar as necessidades e problemas que os estivadores sentem, tentando perceber como a Câmara Municipal pode ajudar a resolver.

Foram recebidos pelo Presidente do Sindicato dos Trabalhadores Portuários da Figueira da Foz, Manuel Gonçalves.

Desta visita resultou uma conversa franca e aberta de ambas as partes tendo sido apresentadas por parte do sindicato algumas medidas que gostavam de ver aplicadas frisando um ponto incompreensível, que é o facto deste ser o único porto do país onde um camião tem de pagar para entrar (2,85 €).”

 

Na Figueira qualquer campanha eleitoral para as autárquicas é um prato cheio de toda a sorte de bizarrias mais ou menos peculiares que ilustram, sempre com cores pitorescas, a essência eminentemente anedótica e paroquial da prática política local.

A deste ano não desmerece. Já houve vandalismo (ao património e à propaganda dos comunas), denúncias ao tribunal, acusações, ofensas, ameaças, queixas, visitas, passeatas, comícios, porco no espeto, munto cumbíbio, artistas convidados, bailinho e cantorias, discursos ditirâmbicos, promessas mirabolantes, mais promessas, inaugurações e indemnizações à boca das urnas, discursos inflamados, mais promessas, etc. Enfim, o habitual.

No meio desta vida loca habitual, o episódio que reproduzi acima, retirado ipsis verbis da página da candidatura de Santana Lopes no facebook, é uma dessas estórias exemplares.

Santana foi ao porto da Figueira. Podia ter ido, por exemplo, à Marinha das Ondas auscultar as necessidades e problemas dos trabalhadores da Lusiaves e tentar perceber como a Câmara Municipal pode ajudar a resolver uma questão gritante de direitos humanos. Mas não era a mesma coisa. Afinal não se trata de portugueses e, embora colectados não estão recenseados, por isso também não são eleitores. Além disso iriam decerto pigmentar desnecessariamente de tonalidades inconvenientes a alvura delicada das páginas da revista Caras; talvez mesmo ofuscar-lhes o brilho acetinado - não ficava bem. Por isso Santana foi ao porto da Figueira visitar a fina-flor da classe operária figueirinhas – é muito mais clean.

Lá chegada a comitiva, na qual pontificava Paulo Mariano, o primeiro candidato à Assembleia Municipal, foi visitar a OPERFOZ (empresa da qual o senhor Mariano é um garboso accionista) e auscultar as necessidades e problemas que os estivadores sentem. Foram recebidos pelo presidente do sindicato dos trabalhadores portuários da Figueira da Foz, Manuel Gonçalves. E foi aí que, na presença do patrão e depois de uma conversa franca e aberta de ambas as partes, Manuel Gonçalves abriu finalmente o livro de reivindicações.

Agora segurem-se. Gonçalves podia ter falado da condição dos estivadores precários (os novos ganhões, conhecidos no cais por “pipocas”, por não terem vínculo laboral) ou da segurança no trabalho, referindo mesmo o caso recente de um traumatismo craniano de um colega seu (precário) transferido com urgência para Coimbra por o hospital local não possuir serviço de cuidados intensivos. Mas não era a mesma coisa. Sim, porque o hospital distrital até tem um belíssimo parque de estacionamento exterior e uma magnífica pista de slalom até às urgências, mas não tem cuidados intensivos, nem maternidade, nem sequer gabinete de medicina legal. Talvez um putativo presidente de câmara municipal que promete aos papalvos fazer da Figueira a capital do mar e centros de ciência e de investigação pudesse fazer algo para ajudar a resolver problemas afinal tão comezinhos. Mas qual quê. Tal não ocorreu a Manuel Gonçalves. O que preocupa realmente o presidente do sindicato dos trabalhadores portuários figueirinhas não são os direitos laborais dos trabalhadores eventuais, nem a segurança no trabalho, nem o direito dos trabalhadores a serviços essenciais de proximidade, nem, por solidariedade ou decência cívica, a dignidade humana dos seus colegas da Lusiaves.

Mas então o que pode fazer alguém que já tem tudo senão ajudar quem realmente precisa? Foi assim que Gonçalves lá abriu o livro e recitou algumas medidas que gostavam de ver aplicadas frisando um ponto incompreensível, que é o facto deste ser o único porto do país onde um camião tem de pagar para entrar (2,85 €).

Perceberam? A principal reivindicação do sindicato dos trabalhadores portuários da Figueira da Foz é a resolução dos problemas de tesouraria do seu patrão. Não é lindo e comovente? É fantástico. Com sindicatos assim fofinhos a CIP não precisa de solicitadores, nem Paulo Mariano de advogados. E o putativo futuro presidente da Câmara Municipal da Figueira da Foz também já tem tudo para, junto da tutela, ajudar a resolver os problemas empresariais do seu candidato à Assembleia Municipal. Porque uma mão lava a outra. Pois, como dizia mestre Gil, assi se fazem as cousas na paróquia. Com duas lousas.

Quanto a Santana Lopes, um político supostamente de primeira divisão, a sua fácil e visivelmente entusiasmada adesão a este paroquialismo serôdio parece indicar como plenamente justificada a sua descida ao último escalão. Se ele não vencer agora, como parecem indicar as sondagens, ainda havemos de o ver candidatar-se a uma junta de freguesia, disputando os regionais.
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1 comentário:

X Dias Longo disse...

É destes idiotas úteis que o capital precisa e, infelizmente eles existem em todos os lados, proliferam como cogumelos selvagens.