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Quando os dias se tornam insuportáveis e tudo o que os
envolve demasiado deprimente, resta-me sempre a evasão. Por estes dias (noites)
tenho andado por outros tempos pela serra d’Arga, pla mão de Aquilino,
acompanhando as grandezas e misérias da casa
grande de Romarigães. A narrativa dos tormentos eróticos de D. Telmo no
assalto à sua cunhada Dionísia é do melhor sexo em português, e do melhor
português já agora (bom de lei), que
alguma vez li. O tesão, o grande tesão,
vivo, brutal e imemorial - descrito em palavras, todas portuguesas - a rebentar
de testosterona e de humor, sem eufemismos nem vulgaridades.
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Mas não me evado nem despaíso,
apenas pla literatura. Agora descobri o Youtube. É verdade. Não o youtube das
palermices virais, claro. Descobri que para além disso, mais fundo, numa
espécie de nicho, é uma plataforma óptima para imensa gente cheia de muito
talento. Gente de todo o mundo.
São os makers,
gente que faz coisas, que mostra como o faz e até se mostra a fazê-las,
partilhando com o mundo os seus conhecimentos. São artistas e artesãos das mais
variadas especialidades: carpinteiros, gravadores, escultores, impressores,
soldadores, cuteleiros, serralheiros, jardineiros, construtores de
instrumentos, etc. Gente como o norte-americano Mike Siemsen. Aqui, o velho
mestre carpinteiro explica como executa excelsamente todos os trabalhos de
marcenaria numa bancada sem prensa. Ou como o também norte-americano Frank Howarth, um artista sofisticado, que construiu para si próprio, ao lado da sua
casa, no lugar de uma velha piscina, um atelier de carpintaria modernamente
equipado onde se deleita fazendo coisas magníficas, como hobbie. Ou o
australiano Neil Paskin, fotógrafo-carpinteiro-serralheiro-desenhador faz-tudo.
Ou o francês Olivier Verdier, que construiu o seu atelier de marcenaria num
velho celeiro algures no sul de França e tem como ferramenta fetiche uma maceta redonda de cantoneiro
português. Ou o divertido canadiano (dos que comem ervilhas) Alain Vaillancourt, l ’gosseux d’bois. Ou o
maker/artist alemão Hassan abu-izmero, que faz todo o tipo de things engenhosas. Ou Uri Tuchman,
também alemão, que grava metais, pinta óleos, talha madeira e inventa as
próprias ferramentas com que cria complexos mecanismos para autómatos bizarros.
Ou o engenhoso turco Cemal Açar, outro faz-tudo num espaço reduzidíssimo. Ou o
talentoso uruguaio Elias Maximiliano que, num espaço despojado e num silêncio
quase monacal, faz carpintaria usando as mãos como ferramenta principal.
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Mas também há outros. Que além de fazerem coisas, falam
sobre elas e sobre o mundo. Têm opinião. É o caso do pintor e meticuloso e
exaustivo crítico de arte mexicano Francisco Soriano. Ou do brasileiro Eduardo Bueno, histriónico contador de
estórias e divulgador de História que, em cada filme de poucos minutos, conta
um episodio da história do Brasil, sempre repleto de pormenores pícaros ou
picantes. Neste, por exemplo, conta como foi projectada a capital do país; não
a actual Brasília, mas a primeira, Salvador (plos tugas). Vejam, também é
história de Portugal, como a coisa foi realmente edificante.
E do pintor espanhol (de Sevilha) Antonio Garcia Villarán, que retratei acima.. As suas opiniões devastadoras (sobre
algumas das unanimidades nacionais aqui ao lado) têm causado um impacto que
ultrapassa já o youtube. Em filmes curtos e bem humorados, Villarán mostra as
suas pinturas, desenhos e projectos de livros e fala do que gosta e do que não
gosta. Sem eufemismos. Miró é o pior pintor de todos os tempos. Tapiés idem
aspas aspas. E Salvador Dali. António Lopez, o autor do “hiper-realista” e fotográfico retrato oficial da família real que alegadamente lhe custou “vinte anos de
trabalho”, merece-lhe o mais vivo sarcasmo. Pollock, um embuste. E Frida Khalo,
também. E Keith Haring. E todos os bonzos reconhecidos da chamada actual arte contemporânea internacional. Como
Yoko Ono; ou Damien Hirst; ou Banksy.
Villarán criou mesmo um termo algo burlesco e subversivo, hamparte, que designa todo este tipo
de arte que é arte apenas porque é designada como tal e porque a sua exibição é
autorizada pelo mercado em locais
apropriados, as galerias comerciais.
Em 2018 este termo tornou-se viral. É
verdade, ultrapassou mesmo o âmbito do seu canal do Youtube (que ainda assim
ultrapassa já os 150 mil seguidores, contra os trinta mil da página de um
gigante como o Museu do Prado) ganhando outras plataformas e chegando mesmo à
imprensa.
Villarán, que já considera que o seu neologismo seja acolhido pela
Real Academia Espanhola criou, para evitar equívocos quanto ao seu significado,
um manifesto em sete pontos que estipulam quando e em que circunstâncias uma
obra deve ser considerada hamparte.
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É evidente que nada disto fez desvalorizar uma merda como Damien Hirst, que no final do ano
voltou a pulverizar records de facturação vendendo pontinhos coloridos e
tubarões em formol. Diz que mais de 140 milhões de euros. Em verdade, quem lhe
compra aquilo continua a lavar dinheiro, mas plo menos todo o mundo ficou a
saber que não compra arte. Compra hamparte.
Também é verdade que o dadaísmo e as boutades anti-arte de
Duchamp foram um sulfuroso sarcasmo dirigido aos valores que o mercado considerava arte… até serem apropriados pelo mercado.
Cabe aos espíritos livres e inconformistas criar sempre
mais e mais sarcasmos; e cada vez mais sulfurosos. E assim sucessivamente, como dizia João César monteiro, outro
grande subversivo.
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