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domingo, 19 de agosto de 2018

o poder e a cegada pimba

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Dominam-se mais facilmente os povos excitando as suas paixões do que cuidando dos seus interesses. 
Gustave Le Bon
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O poder, o grande poder, revela a dimensão ou a substância dos homens que o exercem. O poder local também. Dito de outro modo, se o poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente, como dizem, suponho que o poder local também corromperá, ainda que relativamente. Mas isto sou eu a pensar alto, claro. 
A verdade é que, como referiu o grande Voltaire, “a única forma de lutar contra o poder é tentar sobreviver-lhe”. E é o que modestamente eu vou fazendo, com as minhas tamanquinhas, que são o desenho, que pratico a traço fino, e o sarcasmo, que sublinho com o grosso. O facto de nunca jamais fazer, nem aceitar, favores ou jeitinhos também tem contribuído, senão mais, para manter a espinha direita.
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Todavia, no exercício do poder, certamente inspirados por um certo florentino renascentista, os nossos autarcas têm sempre o cuidado de jamais “levar a nobreza ao desespero nem o povo ao descontentamento”; ó contrére, como dizem os americanos, quando querem parecer cultos e viajados.
Rui Ferreira, o presidente da Junta de Freguesia de Maiorca é o príncipe perfeito local. Não é ainda um autarca-modelo (está lá há pouco tempo) mas já é um autarca de marca. Eleito por poucos votos, ele jaz na sua cadeira de sonho e traz sempre o povo nas palminhas (da nobreza nem falar).
A sua marca, e missão confessada, é “contentar” a todos. Desde que não se prejudique muito, como é óbvio.
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Conhecedor do que a casa gasta, isto é, da predilecção popular por variadas profanidades como a libação etílica e pantagruélica (o comes-e-bebes), o bailinho lúbrico e o foguetório, mas também pla cegada saudosista (para um certo bom-povo, o passado é um lugar radioso), Ferreira não olha a custos para satisfazer a demanda do seu mercado. Ele é desfile de carroças, com burros e tudo; ele é o passeio das pasteleiras, o meio de transporte do antigamente (que pitoresco); ele é a recriação da colheita do arroz com trajes à antiga (que lindo) e, claro, a “vertente gastronómica, mas sobretudo “a vertente cultural”, com muita música pimba e até di-jeis e tudo, para também agradar aos jovens, esse nicho exigentíssimo.
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Altamente patrocinado pla Câmara Municipal (que paga o pato) e certamente aconselhado pelo seu mentor, o vereador e grande conhecedor da alma humana Carlos Monteiro, Ferreira também deve achar que “o reviver de hábitos e tradições correu muito bem e, quando tem retorno, aumenta a auto-estima”. Por isso mesmo a aposta na FINDAGRIM é para continuar.
 
É necessário ressalvar aqui que a Feira Industrial e Agrícola de Maiorca é um evento já com alguns anos e o único (!) no concelho consagrado à “industria” - o que, se diz muito das associações do sector e dos poderes públicos concelhios também aumenta exponencialmente a auto-estima dos maiorquenses e torna o facto duplamente pitoresco pois em Maiorca as únicas actividades vagamente aparentadas com “industria“ que eu conheço são uma padaria, uma oficina de automóveis e uma serralharia que tem dois ou três funcionários e fica a duzentos metros de minha casa; havia também uma oficina de motoretas com um funcionário mais idoso do que o dono; quando este morreu deixei de ver ambos e a loja fechou para sempre, já há uns anitos. 
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Maiorca é essencialmente rural, agrícola - isto é, tem a monocultura do arroz, mecanizada e em latifúndio, e a plantação intensiva do eucalipto, igualmente tenaz e em pequenas parcelas - mas os grandes empregadores da região são a Cruz Vermelha, o hospital distrital e a câmara municipal. Isto cria um fenómeno novo, uma espécie de gentrificação rural ou às avessas, muito bem diagnosticado por Rui Ferreira em entrevista à “Foz ao minuto” (a partir do mn 13.06) “nós aqui sempre fomos zona agrícola, o que faz com que não nos permitam a construção a bom-prazer, não é?, eu gostaria se calhar de ter uma casa em cada terreno que tenho (não é que tenha muitos) mas se calhar não me vale nada os terrenos que tenho porque não posso construir, o que faz com que a juventude se desmobilize e vá viver para outras zonas… e vamos descaracterizando a freguesia de gente jovem(…).
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Por tudo isto, hoje em dia em Maiorca não se cultiva, nem se constrói, nem se faz porra nenhuma.
Mas tudo se há-de arranjar – naturalmente, claro.
Porque o que realmente interessa mesmo é que para o próximo ano, Rui Ferreira quer que a FINDAGRIM “continue a ser uma festa do povo” mas que, ao mesmo tempo, tenha uma preocupação maior com o público mais jovem. “Em primeiro lugar vou ouvir todos os expositores, que nos têm vindo a apoiar, de forma a podermos melhorar. Mas posso adiantar que vamos continuar a ser uma festa do povo com associações envolvidas e com uma aposta no cartaz de cariz popular, com cantores «pimba». Vamos tentar também agradar à população mais jovem, como é óbvio”. 
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Salazar é que a sabia toda - foram muitos anos a assar frangos - nunca levou a nobreza ao desespero nem o povo ao descontentamento (descontentes, se os havia, eram poucos - em verdade, nunca chegaram aos dez por cento - e, a bem dizer, eram quase todos comunistas) – porque para ele, “os homens mudam muito pouco e então os portugueses quase nada".
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2 comentários:

Fernando Torres disse...

Muito bom texto e óptima caricatura (como sempre)

jayvee disse...

Na mosca. Muito bom!