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(...)“Antes de molhar o pincel deves ter
uma ideia de aonde queres chegar, mesmo que não saibas como fazê-lo... Eu hoje
gostaria de chegar à tristeza que existe na alma de um homem de quarenta anos.
Gostaria de a revelar, porque é uma tristeza nova... A dor e a tristeza não são
a mesma coisa, sabias? Tenho muita experiência da dor, tal como da ira, do
desengano, da frustração... e também do prazer do sucesso, mesmo quando os
outros não o entendem e me deixam na beira do caminho... O que não é
estranho... Mas a tristeza é um sentimento profundo, demasiado pessoal. A
alegria e a dor, a surpresa e a ira são exultantes, alteram o rosto, o olhar...
mas a tristeza marca-o por dentro. Onde achas que posso encontrar a tristeza?”
Elias Ambrosius respondeu de imediato, satisfeito com a sua sagacidade: “Nos olhos. Está tudo nos olhos.” O Mestre negou, abanando a cabeça. “Ainda achas que sabes alguma coisa...?
Não, a tristeza está para lá dos olhos... É preciso chegar ao pensamento, à
alma do homem, para a ver; e falar com essas profundezas, para tentar
reflecti-la...” O Mestre molhou o pincel no pigmento amarelo e começou a marcar
as linhas do que rapidamente se transformou numa cabeça. “Por isso muito poucos
homens conseguiram retratar a tristeza... Um homem triste nunca olharia para o
espectador. Procuraria alguma coisa que está para lá de quem o observa, um
vestígio remoto, perdido na distância e, ao mesmo tempo, dentro de si próprio.
Nunca olharia para cima, à procura de uma esperança; também não o faria para
baixo, como alguém envergonhado ou receoso. Deve ter o olhar fixo no
insondável... O rosto ligeiramente voltado para dentro, a luz não muito
brilhante na face virada para o espectador, as pálpebras bem visíveis... Para
fazer com que o rosto sobressaia e se possa concentrar aí a força, o melhor
sempre foi um fundo castanho-escuro, mas nunca preto: a profundidade do
ambiente corresponderia à profundidade dos sentimentos, reiterá-los-ia e
acabaria com o seu mistério... Diz-me, rapaz, sentes-te capaz de pintar a minha
tristeza?” “Vou tentar, com a sua licença...”(...)
Leonardo
Padura, Herejes (O Livro de Elias, pag.297)
Um amigo deu-me a conhecer um grande livro; de um grande,
e verdadeiro escritor. Trata-se de
Herejes, de Leonardo Padura.
A leitura desse livro denso e complexo - susceptível de muitas leituras - sobretudo
da sua segunda parte, O Livro de Elias,
da qual destaquei o trecho em epígrafe, não deixou de me fazer recordar uma das
minhas primeiras tentativas de fixação da tristeza
- uma ingénua e canhestra porém atrevida aventura nas profundezas desse misterioso
e movediço território que é o do retrato: a representação, para além da
verosimilhança e das evidências, dos vestígios que a dor, a ira, a decepção e a
frustração deixam, indeléveis, nos rostos humanos.
É disso que tratam os retratos. De História. De salvados das ocorrências. De vida. Da vida que sobra.
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No entanto na vida, e na História, acontecem por vezes estranhas
confluências de factos, aparentemente desligados no tempo e no espaço, carregados
de significados misteriosos, surpreendentes ou inexplicáveis. Como o detective Mário Conde, também eu me interrogo “sobre as formas como se criam, avançam, torcem e até confluem os
caminhos da vida de pessoas tão diferentes e distantes” como, por exemplo, um aclamado
escritor cubano da actualidade e um obscuro pintor sem-eira-nem-beira nem
futuro como eu.
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Por isso não é sem algum assombro que verifico que o meu pobre quadro de 1988
parece ilustrar exactamente o que Padura descreve em 2013. Só que o jovem judeu Elias Ambrosius,
aprendiz de pintor, ouvindo uma lição de anatomia, ou de pintura, do mesmo
Mestre, sou eu.
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6 comentários:
Trecho tão apelativo que me leva a tentar encontrar o livro.
Salto do traço para o texto e do texto para o traço
e há várias ligações possíveis dentro da coerência de quem escreve e do citado
mas
num despropósito te peço
aumenta-me esse corpo de letra
(é que estou a ficar jarreta
e não suporto perder um bom parágrafo)
Fazes isso a um amigo?
Caro Rogério, eu bem queria, mas não posso. A letra torna-se-ia demasiado grande e o post gigantesco. Vou pô-lo a negro, espero que pelo menos assim se torne mais legível. Um abraço a ambos.
Grata pela partilha.
Eu apoio no ctrl e na tecla + (mais) e aumento o corpo de letra.
E já agora, para conseguir o inverso CTRL e - (menos)
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