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sábado, 12 de julho de 2014

O futebol e a vida

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Na minha infância o futebol era uma metáfora do fantástico e do imponderável. Hoje em dia, tal como na vida, para mim no futebol também já não há mistério. Empresarialisou-se. Tornou-se um negócio à escala mundial, programado, sem surpresas, demasiado previsível: já não há lugar nele para Manés Garrincha, Georges Bests, Diegos Maradonas ou Victor-Baptistas.
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Se, como já ouvi alguém, uma equipa de futebol deve ser como a big band de Duke Ellington - uma orquestra de músicos inspirados e solistas geniais dirigida por um génio inspirado - eu já vi jogar equipas assim: a Holanda de 1974 e o Brasil de 1982. Perderam, é claro, e talvez tenha sido essa tragédia que precipitou o futebol neste pesadelo resultadista obcecado com a “eficácia”, previsível e aborrecido. 
O que é facto é nunca mais vi equipas “tocarem” assim. No futebol actual não há lugar para a alegria do jogo (para quem não sabe, o futebol é um jogo colectivo, tal como a música), nem para “músicos” inspirados como Sócrates (o doutor, não o inginheiro) ou Cruijff, nem para “directores d’orquestra” como Rinus Michels ou Tele Santana. Apenas para paulosbentos e felipões; e Joachim Löw.
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Sim porque a Alemanha é uma orquestra afinada. Mas está para a alegria do jogo mais ou menos como a orquestra de Paul Mauriat para a música: não tem imaginação nem fantasia, nem Paul Gonsalves nem Johnny Hodges nem Ben Webster, nem os outros todos; nem o Duke, claro. A Alemanha, no entanto, com o seu futebol frio e burocrático tem sido sempre uma orquestra demolidora da bela música do futebol maravilha. Foi assim em 1954 com a Hungria de Puskas e kocsis (esta nunca cheguei a ver), em 1974 com a Holanda e em 1990 com a Argentina.
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Neste mundial deu para ver aliás que todas as equipas que tentaram jogar com a Alemanha pelo resultado (para perder por poucos, para empatar ou vencer por poucos) levaram muitos, à cabazada. À excepção do Gana (uma equipa que lamentavelmente só a espaços parece conhecer e querer partilhar o prazer do jogo) e da Argélia.
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A equipa de Islam Slimani foi a única que esteve perto de poder vencer os alemões. Mas apesar do bom futebol não é ainda uma big band das antigas: falta-lhe a ousadia, a generosidade, o desprezo pela derrota e um je ne sais quoi que não consigo definir mas que talvez fosse o ingrediente capaz de transformar o boato - de que a equipa de Slimani doaria o seu prémio de nove milhões de dólares aos habitantes da Faixa de Gaza - numa notícia verdadeira. O futebol resgataria a vida. E talvez também o meu antigo fascínio pelo imponderável, esse mistério que é a esperança.
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A Faixa de Gaza, para quem não sabe, é a parcela do globo com maior concentração de habitantes por metro quadrado. Estão aí confinados por um embargo que até lhes nega o acesso a ajuda humanitária porque dizque deusnossosenhor em pessoa prometeu a sua terra em exclusivo a uns senhores que não apreciam carne de porco à alentejana.
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