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sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Alexandre O'Neill



Poema pouco original do medo
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O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis
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Vai ter olhos onde ninguém o veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no tecto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos
.
O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com a certeza a deles
.
Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados
.
Ah o medo vai ter tudo
tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)
.
O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos
.
in Alexandre O'Neill, 
Abandono Vigiado, 1960
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1 comentário:

cid simoes disse...

E ficamos assim, pasmados, sem saber o que dizer, como se fosse necessário dizer alguma coisa.