Acabo de reler Eusébio
Macário, de Camilo Castelo Branco. Uma novela que o autor escreveu de um
jacto, em 1879, para demonstrar “a uma senhora” que era capaz de escrever um
romance de “estilo realista”.
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Trata-se, segundo o autor, da “História natural e social de uma família no tempo dos Cabrais” e é
uma assumida paródia ao naturalismo e ao seu estilo “realista”, então em voga. Mas
é também, e sobretudo, uma desbragada e farsola “estória natural e social” de
uma família portuguesa de qualquer tempo, contada com requintes de sarcasmo e híper-realismo
que resultam num magistral retrato, escarrado, descarnado e escarrapachado, do
Portugal actual e imemorial. Trata-se, bem fundo, do mesmo apreço lúbrico pelo
dinheiro e pela posição; da mesma
preferência torpe pela ascensão social através do favor ou do logro (ou do
tráfico combinado destas influências) e da mesma propensão irreprimível por sensualidades
um tanto sórdidas ou apenas acanalhadas.
O que também prova que Camilo é um
escritor intemporal.
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Ele, ao contrário dos naturalistas, nem sequer acreditava
que a literatura ou a arte tivessem particulares poderes edificantes,
potencialmente salvíficos ou até regeneradores dos males da sociedade. Este
livro é, aliás como a sua sequela A corja,
do princípio ao fim, um deboche pegado com essa santa ingenuidade naturalista.
Camilo escrevia para ganhar a vida. Ganhou-a a duras penas, mal e porcamente
pago, quase sempre. É justo que ao menos se tenha divertido.
.
Pela parte que me toca, eu, que também não tenho ilusões
românticas, leio-o hoje, cem anos depois, por puro prazer. E divirto-me como um
perdido. É uma experiência única, inexplicável, um fenómeno que só me acontece
com Gil Vicente, Cervantes ou Fellini, enfim, com os grandes mestres da
caricatura: um riso imponderado vem-me do estômago, estremece-me o esqueleto todo
em espasmos irreprimíveis e continua para cima onde desagua em voluptuosas
cócegas, no córtex central.
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É uma lástima que um escritor assim seja tão pouco lido - talvez o seu vocabulário seja demasiado exuberante, inextricável e exótico para
a língua elementar em que se exprimem hoje em dia até as eminências, na
televisão.
Ou talvez não seja de todo isso.
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No fundo já ninguém lê coisa nenhuma, salvo o catálogo do
IKEA, o do Lidl e as revistas de celebridades, enfim a literatura de
supermercado. Novelas, é na televisão. E a respública
é no feice (FaceBook).
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Por isso, uma livraria com a idade aproximada de Eusébio
Macário fechou para sempre, na Figueira da Foz.
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O país de hoje, embora seja o mesmo de há cem anos e de
sempre, é agora cada vez mais iluminado pela luz crua da mediocridade e da
estupidez.
Os padres femeeiros e devassos, as alcoviteiras e os novos ricos analfabetos
e brutais de Camilo parecem-me hoje quase pueris, de grotescos e ridículos. Agora são medonhos. Corruptos e pedófilos.
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Este já não é um tempo de cabrais.
É um tempo de cabrões.
E não há ninguém, um Camilo por exemplo, que seja capaz
de fazer arte de toda esta iniquidade.
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Ao alto, a (última) montra
da Havaneza, na Figueira da Foz.
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3 comentários:
Assisti à morte de uma pequena livraria no Cartaxo, o proprietário faleceu pouco depois. Continuamos a morrer pela cabeça e os pés tropeçam um no outro. Estou a reler Raul Brandão. Abri ao acaso o 2º vol. De “HUMUS” e leio um sublinhado «todos passamos os dias a resignarmo-nos. Muitos nem dão pela vida. Há seres que tanto faz estarem vivos como mortos…» A resignação… “a paciência pegajosa”, não podemos baixar os braços.
Uma pena, de facto. Não eram só os livros, lembro-me de ter uma pequena prateleira com CDs que na Figueira não se encontravam em amis lado nenhum, cheia de clássicos dos anos 50 e 60 e a preços nada exagerados, onde adquiri boa discografia, nomeadamente de blues. O mundo mudou muito, mas ainda há muita gente a ler, só que ao preço que os livros estão, e com o parco poder de compra que temos, a pirataria ganha asas, e o PDF um lugar na "prateleira". O facto da Figueira ter estagnado já desde há alguns anos também não ajuda muito.
Uma pena, de facto. Não eram só os livros, lembro-me de ter uma pequena prateleira com CDs que na Figueira não se encontravam em amis lado nenhum, cheia de clássicos dos anos 50 e 60 e a preços nada exagerados, onde adquiri boa discografia, nomeadamente de blues. O mundo mudou muito, mas ainda há muita gente a ler, só que ao preço que os livros estão, e com o parco poder de compra que temos, a pirataria ganha asas, e o PDF um lugar na "prateleira". O facto da Figueira ter estagnado já desde há alguns anos também não ajuda muito.
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