,Sábado, dia de reflexão, foi para mim um dia voluptuoso, embora perturbador.
Apesar de ter andado, de manhã, a podar roseiras, de tarde fui a uma exposição e, à noite, ao teatro.
.Tive uma saborosa confirmação, algumas (boas) surpresas e uma epifania, ou seja, uma perturbante revelação.
.Depois da espinhosa tarefa matutina, fui à exposição do meu amigo Filinto Viana (há algum tempo que não via reunida uma colecção alargada dos seus trabalhos). Nesta mostra das suas pinturas recentes, na Galeria da Magenta, Filinto confirmou o que já aqui disse dele (é sempre reconfortante a confirmação das nossas impressões) e acrescenta ainda uma cada vez mais sofisticada complexidade de composição aos seus delirantes devaneios de colorista.
-Depois do jantar, um não despiciendo, muito escapatório e mal passado bife com um rutilante ovo estrelado a cavalo, dirigi-me à Sociedade de Instrução Tavaredense, onde me esperavam lautas surpresas, uma revelação e José Ribeiro, à porta, no seu busto todo iluminado.
-Primeira surpresa: Fernando Romeiro. Depois do excelente “o Inspector-Geral”, de Gogol, no ano passado, a sua Inês Pereira, não sendo nenhuma obra-prima parece-me, no entanto, mais um passo firme na árdua tarefa de, em Tavarede, fazer teatro de “outra maneira” sem beliscar o legado do mentor da colectividade. O que é notável, num meio conservador com um público mais fiel à forma do que à substância dos ensinamentos do velho mestre, mas que apesar disso ainda enche salas para ver teatro.
,Segunda surpresa: Fernando Romeiro é bem capaz de ter descoberto uma estrela. A jovem Raquel Henriques, notável de vivacidade no seu papel de Inês Pereira, foi para mim uma revelação (João Matos Amorim também não esteve mal no seu Brás da Mata).
.
.
Finalmente, a epifania.
A perturbante revelação. Eu já sabia que Gil Vicente era um génio e a Farsa de Inês Pereira a sua obra-prima, mas foi-me impossível, ao rever a peça, não descobrir semelhanças entre as suas personagens e situações com situações e personagens do entremez eleitoral que todos acabámos de presenciar. E fazer associações. Não fui capaz de não ver em Pêro Marques, o marido bronco e enganado, um óbvio antepassado do Zé Povinho, essa personagem boçal e desconfiada mas crédula, que Rafael Bordalo Pinheiro criou no século passado.
.
.
No final da farsa de mestre Gil, o pobre imbecil Pêro Marques leva Inês Pereira às cavalitas ao encontro do amante enquanto, instruído por ela, canta repetida e alarvemente: “pois assim se fazem as cousas”.
No final das presidenciais e, tal como Pêro Marques, o nosso Zé também está dividido: se uma parte de si sabe mas não se importa (nem foi votar), a outra está feliz, também canta vitória e também leva o Cavaco às costas ao encontro dos seus santos mercados, para gáudio (ou escárnio, e proveito) da alcoviteira Lianor Vaz (os doutos comentadores) dos judeus casamenteiros (as agências de sondagens) e do excelentíssimo público.
No final das presidenciais e, tal como Pêro Marques, o nosso Zé também está dividido: se uma parte de si sabe mas não se importa (nem foi votar), a outra está feliz, também canta vitória e também leva o Cavaco às costas ao encontro dos seus santos mercados, para gáudio (ou escárnio, e proveito) da alcoviteira Lianor Vaz (os doutos comentadores) dos judeus casamenteiros (as agências de sondagens) e do excelentíssimo público.
"Assim se fazem as cousas, com duas lousas", cantam eles.
-
-
Cai o pano. E uma vaga de frio polar.
.
.
Por vezes, a presciência dos génios enregela-nos até ao tutano dos ossos.
,
.
1 comentário:
O que aconteceu é pura ficção. Não conheço ninguém que afirme ter participado na farsa.
Enviar um comentário